Mas este exame de consciência só teve lugar depois que alguns capitães se dirigiram a mim.
Após o ritual de levantamento, individualmente, alguns capitães me procuram no meio dos festejos e me disseram que durante a consumação do elo entre os céus e a terra [pois é disso que se trata!] o espírito do senhor das matas havia se apossado do meu corpo e que eles conseguiam ver, nitidamente, a presença dele ali, em mim. Ao ver meu espanto e minha ignorância com relação ao que eles falaram, um me pediu desculpas e disse para que eu não me assustasse. O que ele falara era uma coisa boa e só refletia a força da minha espiritualidade, o meu lugar dentro do congado.
Achei por bem escrever algumas poucas linhas sobre o meu campo junto do reinado. Como minha relação com os membros do congado e com a manifestação já foi apresentada nas páginas anteriores, não me prolongarei mais a esse respeito. Quero apenas esclarecer alguns pontos em relação a metodologia de trabalho e à disposição de “ser/estar afetado”.
Durante todos estes anos em que estive acompanhando o reinado sempre me vi perdido, perturbado e encantado com aquele universo. Numa me coloquei em uma posição distante, como o cientista que observa seu objeto. Na verdade, nunca, nunca mesmo me vi, me percebi, enquanto um cientista social. Primeiramente apenas um observador.
Logo em seguida passei a me posicionar enquanto congadeiro. Não se trata aqui de uma conversão. Muito menos de uma coincidência de olhares entre eu e os membros do grupo. Trata-se apenas de quando passei a me perceber enquanto mais um congadeiro, quando me percebi no local que os próprios membros das irmandades haviam escolhido para mim. Transformou-se a perspectiva! Passei a ser atravessado por aquele universo. A magia se apresentou a mim, fui enfeitiçado. Como pontuei anteriormente, não escolhi, mas fui escolhido.
Meu campo, então, se viu transformado, multiplicado. Encontrava-me o tempo todo em campo, o tempo todo com eles. Não foram, como não são, apenas as festividades os momentos por mim vivenciados/experienciados. Isso é interessante! As relações com o reinado passaram a fazer parte das minhas relações cotidianas. Vou à casa da Tuca, como vou à casa de minha avó! Da mesma forma, vou fazer uma visita à Dona Isabel. Organizamos churrascos, cozinhamos juntos como faço com meus amigos. Vou a festas de aniversário, celebrações de casamento. Já comemorei meu aniversário em um terreiro de reinado! As festividades do reinado constituem um, dos tantos momentos, em que estamos juntos.
Desta forma as informações, os relatos que serviram de base para a reflexão teórica deste trabalho se deram neste percurso, em meio a várias conversas, em meio a tantos encontros. Nunca gravei nenhuma entrevista, com nenhum membro do reinado, objetivando colher material que me servisse de apoio a esta “pesquisa”. Nunca saí a fotografar, nem a filmar as festa guiado também por tal ímpeto. Na verdade, fotografei e filmei poucas festas de congado. Não quero, assim, desqualificar tal empreendimento, mas ressaltar uma outra forma de se colocar, de se estar diante/com o outro. O que quero enfatizar é que, a cima de tudo e qualquer coisa, a antropologia, para mim, se transformou numa forma de vida!
Para finalizar gostaria apenas de dizer que o tema deste trabalho me foi dado, e não construído. Tentei me desvencilhar de minhas perguntas, de minhas dúvidas (mas que depois se confundiram às deles) e busquei captar a força que movia as pessoas dentro do emaranhado que compreende o reinado. Assim, o universo mágico e o sagrado, são as dimensões que mais fortemente foram apontadas pelos seguidores do reinado. É de fé, de crença, de magia que se trata o reinado. Como me disse uma vez o capitão João Lopes, “Será que eles pensam que a gente canta e dança o reinado por divertimento, para aparecer? Será que eles não sabem que o reinado é nossa fé, nossa religião?”
O Reinado em Louvor ao Rosário de Maria
Senhora do Rosário, Undamba Berê Berê. Essa é mãe dos homens pretos. É para ela, em seu louvor, que se canta e dança o congado. É para a “mulher bonita, senhora das águas do mar”, que se organizam as cerimônias rituais dos Reinados Negros de Minas Gerais.
“Os festejos do reinado apresentam uma estrutura organizacional complexa, disseminada em uma tessitura ritual que desafia e ilude qualquer interpretação apressada de toda a sua simbologia e significância. Levantação de mastros, novenas, cortejos solenes, coroação de reis e de rainhas, cumprimento de promessas, folguedos, leilões, cantos, danças, banquetes coletivos (rezas e benzeções, embaixadas, pontos, simpatias), são alguns dos muitos elementos que compõem as celebrações dramatizadas em toda Minas Gerais” (Martins, 1997: 44).
As narrativas orais nos oferecem um vasto leque de versões do mito de origem desses rituais que tem como estrutura central o aparecimento e o resgate da imagem da santa. As variações da história se dão de diversas maneiras, sendo influenciadas por estórias, musicalidades, cores, imaginação, localização espacial (há imagens que surgem no mar, de trás da serra, no deserto etc.) aparecendo diferenciações inclusive dentro de uma mesma Irmandade.
Uma das versões mais difundidas do mito de origem do Reinado (ou dos festejos do Reinado) diz que durante o período da escravidão a imagem de Nossa Senhora surgiu no mar e foi avistada por negros cativos. Estes negros correram para avisar o seu senhor o que haviam visto. Depois de convencidos, os brancos partiram para orla e constatando a veracidade do relato recolheram a imagem e colocaram-na em uma linda capela. No dia seguinte a imagem havia desaparecido do altar e reaparecido novamente sobre as águas do mar. A empreitada se sucedeu algumas vezes até que, convencidos pelos negros, os senhores permitiram que eles tentassem retirar a imagem das águas e, caso obtivessem êxito, poderiam cultuá-la a seu modo.
Um grupo de negros então pôs-se a tarefa. Foram para a beira do mar, dançando e cantando com roupas coloridas e brilhantes, fazendo coreografias exuberantes e a imagem lentamente foi se movendo. Ao perceberem que a Santa já os seguia, viraram-se de costas para a imagem e continuaram em direção à praia achando que a virgem continuaria os seguindo. A imagem, no entanto, não prosseguiu, permaneceu no mar.
Um segundo grupo, então, arriscou-se na tarefa. Este grupo, com negros retintos, mais velhos e simples, construiu três tambores de madeira oca e folhas de bananeira, o candombe, e puseram-se a tocar e rezar para a imagem. Com um compasso lento e batida forte, com os pés descalços e próximos do chão, acompanhados das gungas e de seus patangomes, e sem nunca darem as costas para a imagem, foram, aos poucos, seduzindo a santa que se colocou sobre um dos tambores, o Santana, e devagar, bem devagar, acompanhou aqueles homens. Neste instante, a imagem chorou e de suas lágrimas caídas no chão surgiu o arbusto de nome Lágrimas de Nossa Senhora, com cujas sementes se faz o Rosário em sua devoção. A imagem então foi colocada em uma simples choupana onde permaneceu e passou a ser cultuada como protetora dos negros.
Durante as festividades do Rosário este mito é rememorado e recriado pela "performance ritual" através de gestos, cantos, falas, danças e disposições hierárquicas que, hibridizados a outros elementos sagrados, bem como a elementos sociais e políticos que aludem à diáspora africana, à escravidão colonial e ao preconceito cultural presente após a abolição fundando novas narrativas.
Os participantes do congado, conhecidos entre si, e pelos "outros", como congadeiros se organizam em grupos chamados de guardas ou ternos que se diversificam de acordo com a região e a história do grupo. Em Minas Gerais multiplicam-se as guardas de Congo, Congo de Viola, Moçambique, Candombe, Catopé, Vilões, Marujos e Caboclos, cada qual com sua “origem”, elementos e performances específicos.
Dentre todos estes ternos há um destaque especial, pelo menos na região por nós estudada, a dois grupos: os Congos e os Moçambiques. Os Congos apresentam-se na estrutura ritual à frente do cortejo abrindo os caminhos. Eles lutam, limpam o percurso, enfrentam os males e anunciam com suas alegorias os que se seguem a ele. Na sua grande maioria apresentam adereços coloridos e brilhantes. Capacetes com fitas, quepes, saiotes coloridos, bastões, com os quais fazem coreografias, etc. As cores e adereços que compõem as fardas modificam-se de guarda em guarda, de região em região. Posicionam-se em duas fileiras encabeçadas por aqueles que portam as caixas. Os dançantes pulam e dançam fazendo as mais frenéticas coreografias. Seus movimentos são rápidos e suas caixas tocam dois ritmos diferentes: o grave e o dobrado. As espadas e o pequeno tamborim são os símbolos hierárquicos portados pelos capitães da guarda. Na leitura mítica, como pode ser percebido, o Congo representa o primeiro grupo a tentar resgatar a imagem do mar sem obter sucesso.
O Moçambique é o senhor das coroas, é dada a ele a função de conduzir reis e rainhas. Por isso é sempre o último grupo do cortejo e é também por isso que sempre movimenta-se mais lentamente. Seus membros possuem fardas sem muitos coloridos e penduricalhos, mas rica em outros adereços. Só os moçambiqueiros usam lenços amarrados na cabeça, gungas e patangomes e tambores de sons mais surdos e graves. Vestem saiotes brancos, ou azuis, ou rosa, variando de guarda a guarda, sobre a farda toda branca. Dançam com os pés próximos do chão, com pisadas fortes, ombros encurvados, lembrando os pretos velhos. Nos momentos específicos, sempre dançam, cantam e caminham sem dar as costas para os reis e rainhas. São tidos como a guarda mais “preta” do congado, fazendo alusão ao mito e ao fato de ser atribuído aos moçambiqueiros o poder de fazer e desfazer magias. Seus capitães portam, como símbolo de poder, bastões de madeira que possuem poderes mágicos e passam por específicos rituais de consagração. Na releitura mítica representam o grupo que conseguiu tirar a imagem do mar conduzindo-a até a cabana para ela preparada.Enquanto instrumento maior todo congadeiro porta consigo o terço e o Rosário cruzado em seu peito. Outros instrumentos e elementos, carregados de força, estão sempre presentes nos ritos, cumprindo cada qual o seu papel. Nesta lista entram os estandartes das guardas, o cruzeiro no adro das capelas, os candombes, os mastros, os bastões dos capitães do Moçambique, as espadas do Congo e dos guarda coroas, entre outros.
Durantes os rituais, os reis e rainhas Congos são os líderes cerimoniais, núcleo de uma estrutura hierárquica rígida. Representam tanto a virgem coroada, como as nações africanas do passado e seus ancestrais. Os capitães comandam suas guardas. Além dos reis e rainhas Congos, aparecem também os reis festeiros ou reis de ano, reis de São Benedito e rainhas de Santa Efigênia, da Cruz, Nossa Senhora das Mercês entre outros. Enquanto estes últimos reis têm suas funções garantidas pela justeza de sua conduta e pela vontade do grupo, o rei Congo e a rainha conga possuem cargo vitalício e hereditário, na maioria das vezes. Sua importância exige, diferente dos demais reis, que sejam negros. “‘[...] outros reis e rainhas podem ser até brancos, mas os reis Congos devem ser negros’” (Capitão João Lopes, apud. Martins, 1997: 47).
Estes ritos de devoção à Nossa Senhora do Rosário encontram-se enraizados em território brasileiro há tempo. Suas reminiscências estão relacionadas à diáspora, pois os negros cativos que aqui chegaram já trouxeram consigo a devoção à virgem e a tradição de coroarem reis negros. Aqui, claro, o rito recebeu diversas influências e se modificou de maneiras também diversas, dando origem, segundo alguns pesquisadores, a outras manifestações religiosas populares. Sua estrutura hibridizada aponta elementos do catolicismo popular, elementos de práticas mágicas africanas, simpatias e crendices populares e hoje, como traço muito forte, elementos da umbanda e do candomblé. É muito recorrente observarmos nos pescoços de congadeiros, sobretudo dos moçambiqueiros, a utilização de guias de orixás e presenciarmos a visita de uma guarda de congado a um terreiro de candomblé ou a um centro de umbanda.
De uma maneira geral, concordo com Martins, quando aponta a especificidade da organização social como uma chave importante para alcançarmos uma definição do Reinado. Diz a autora:
“tendo uma forma de organização social distintiva os Reinados negros podem ser lidos como um micro-sistema que opera no interior do macro-sistema, dramatizando um modo de reelaboração secular e religioso diverso, inscrito no cotidiano das comunidades, expressão de uma cosmovisão e de uma vivência do sagrado singulares. A sintaxe que organiza os ritos e toda a representação simbólica deriva-se da narrativa fundadora, tecida pelo cruzamento do católico com repertórios textuais de arquivos ágrafos africanos, reencenados, como um texto terceiro, pela tradição oral”. (Martins, 1997: 47).
Das terras de lá às terras de cá: reis são reis
Falar de Reinado, de congado é falar em majestade!
É a imagem dos reis e rainhas coroados que mais fortemente nos marca. Não apenas porque em meio ao ritual tão rico em cores e sons, bailados e saltos, as majestades possuem lugar de destaque, mas também porque a própria imagem real nos transporta para um mundo de glórias e fantasias, para um mundo mítico. São de reis e rainhas, de príncipes e princesas os papéis de destaque nos contos de fada, nas histórias de cavaleiros e até mesmo nas histórias sagradas. Mas também na história, à medida que nos distanciamos no tempo, em busca dos acontecimentos mais remotos, nos deparamos com a realeza. E é esta distância que confere à imagem da realeza um caráter fabuloso, legendário.
Este caráter fica ainda mais evidente se nos defrontarmos, não mais com a nossa história e nossas estórias, mas com outras culturas, com povos cujos traços culturais nos são um tanto exóticos, e que também reverenciam uma figura real, ou de características aproximáveis às que caracterizamos enquanto tal. Indivíduos que ocupam lugar de destaque na hierarquia social e cuja imagem está associada a outras esferas da realidade, usualmente se vêem ligados ao mundo dos mitos, ao mundo mágico. Pois então, há sempre algo a mais na figura dos reis que confere a eles uma condição especial. Que os faz ser do nosso mundo e de um outro, além.
- Em Nemi...
Frazer, em O Ramo de Ouro, ao estudar o rito sacrificial do Rei do Bosque, o sacerdote de Diana em Nemi, percorrendo vasta literatura a respeito das mais diversas realezas encontradas no globo, chega a uma associação recorrente em grande parte das culturas: a associação entre realeza e divindade. A despeito de sua teoria evolucionista, sua sensibilidade teórica o leva a esta relação extremamente poderosa que é muito cara para o presente trabalho.
Ele vê na figura real uma união “do poder temporal com o espiritual, de atribuições reais e sacerdotais” (Frazer, 1982: 32). As diversas culturas mostram que os reis podem ser, ao mesmo tempo, sacerdotes, e também cultuados como deuses. A função destes últimos não estaria associada a uma intermediação entre os homens e seres divinos, mas seriam eles mesmos cultuados enquanto divindades detentoras de poderes sobrenaturais capazes de agir sobre todas as coisas. Para Frazer, os reis seriam uma evolução dos feiticeiros, esses mais primitivos, substituindo suas funções mágicas pelas sacerdotais.
Dois caminhos levariam a essa concepção de um “deus-homem”. O primeiro estaria ligado à indistinção, para os povos ditos primitivos, entre o natural e o sobrenatural.
“Para ele (o homem primitivo), o mundo é, em grande medida, regido por agentes sobrenaturais, isto é, por seres pessoais que agem por impulso e motivos idênticos aos dele próprio, e que, como ele, podem ser movidos por apelos que lhes mobilizem a piedade, as esperanças e os receios. Num mundo assim concebido ele não vê limites ao seu poder de influir no curso da natureza em seu próprio benefício” (Frazer, 1982: 33).
Através de preces, oferendas, sacrifícios e ameaças seria ele capaz de solicitar dos deuses, por exemplo, bom tempo ou boa colheita. Mas poderia, também, ter o privilégio de encarnar uma divindade e possuir, assim, todos os poderes para atingir os seus anseios e de seu povo.
O segundo caminho, e que para o autor estaria ligado ao “germe da noção moderna de lei natural”, seria “a visão da natureza como uma série de eventos que ocorrem numa ordem invariável, sem a intervenção de qualquer agente extranatural”(Frazer, 1982: 33). Essa concepção estaria ligada à noção, por ele elaborada, de magia simpática. A noção de magia simpática fornece os elementos que explicam a possibilidade do rei ser considerado mago, sendo inclusive escolhido, pela sua grande habilidade na magia, negra ou branca. Ou, acontecendo o contrário, recebendo, pela força do cargo, o poder de manipular as forças da natureza. Assim sendo, conseguiria ele, através de ritos mágicos, atingir os objetivos que se obteria recorrendo aos deuses.
Evans-Pritchard, numa conferência proferida em 1948, em homenagem à memória de Frazer, falando sobre a monarquia divina a partir dos shilluks do Sudão anglo-egipício, corrobora com a idéia seminal do antropólogo.
“Para Evans-Pritchard, a monarquia tem sempre, em todo tempo e lugar, algum grau de sacralidade. Se o rei simboliza toda a sociedade e não pode identificar-se com nenhuma parte dela, deve estar ao mesmo tempo dentro e fora da sociedade, o que só será possível com a localização de seu cargo num plano místico” (apud. Mello e Souza, 2006: 26).
Assim como Frazer aponta uma evolução linear entre o feiticeiro e o rei, acredita também que os emblemas reais como a coroa e o cetro sejam a sucessão dos talismãs e fetiches utilizados pelos mágicos. Por isso, os emblemas reais trazem consigo algumas características mágicas que lhes conferem tamanho poder. A sucessão real também é marcada pela esfera de ação mágica. Os sucessores não eram, e não são, obrigatoriamente descendentes de reis. Os homens comuns também podem atingir a personificação de divindades reais, assim como ocorre entre os budistas tártaros. E são características e poderes mágicos que podem conferir ao indivíduo o privilégio de ocupar ou encarnar a figura de poder.Fazendo, talvez, um caminho inverso ao de Frazer, gostaria de mencionar as associações que são feitas entre divindade e realeza na cultura judaico-cristã. É válido lembrar que Deus – onipotente, onisciente e onipresente – é sempre mencionado como o “Rei dos Reis” e sua criação (o universo e suas criaturas) como sendo o Reino de Deus. “A lua será confundida, o sol terá vergonha, porque o Senhor Todo-poderoso é rei no monte Sião e em Jerusalém e diante dos anciãos está a sua glória” (Is 24, 23). “Depois da paixão, se lhes apresentou vivo, dando-lhes muitas provas, aparecendo durante quarenta dias e falando das coisas referentes ao reino de Deus” (At 1, 3).
O filho de Deus, e ele mesmo Deus, Cristo, é também rei e, ironizando a realeza do Messias, foi ele coroado com espinhos pelos romanos, antes de seu sacrifício. “Vestiram-lhe um manto de púrpura e coroaram-no com uma coroa tecida de espinhos e começaram a saudá-lo: ‘Salve, rei dos judeus’” (Mr 15, 17-18). Da mesma forma, pregaram no alto da cruz as inicias INRI que significam: Jesus Nazareno Rei dos Judeus.
A relação se estende aos dogmas de fé da Igreja Católica Romana. A Virgem Maria, mãe do Messias, não teria morrido, mas sido elevada aos céus pelos anjos de Deus, como nos diz o mistério da Assunção de Nossa Senhora. E estando junto de Deus teria sido coroada a Rainha dos homens. Em todas as imagens da Virgem, em todos os seus títulos, ela é representada portando uma coroa. “Apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida do sol, com uma lua debaixo dos pés e na cabeça uma cora de doze estrelas” (Ap 12, 1). Da mesma forma que um Rei pode ser feito divindade: Xangô, rei de Oyo, feito Orixá; um homem pode ser feito deus e, sendo deus, pode ser feito rei: Jesus, Rei dos judeus. Os Reis são Reis porque possuem esse poder ambíguo. Um poder temporal e sagrado, um poder de mediador entre homens e deuses, ou de agenciador de poderes mágicos e sobrenaturais. Um poder que é ao mesmo tempo natural e socialmente construído e atribuído.
- No Congo...
Seguiremos um percurso que se inicia com o encontro dos portugueses e os habitantes do congo no século XIV, que já se encontravam organizados em um império, culminando nas manifestações de coroação de Reis Negros que tiveram lugar no Brasil colônia e as atuais manifestações de coroação de Reis Negros, como o Reinado. Estas manifestações serão lidas a partir das reorientações culturais emergidas a partir desse acontecimento histórico, tendo em vista os elementos sociais, políticos e religiosos acionados nesta situação.
Nos estudos de Marina de Mello e Souza sobre a coroação de Reis Negros no Brasil, “Reis Negros no Brasil Escravista”, a historiadora mostra que W.G.L Randles também destaca aspectos de sacralidade do rei na região da África Centro-Ocidental, “‘onde todo rei revive em si a divindade suprema, o deus criador. É ele que deve assegurar a prosperidade, a fecundidade e a chuva em seu reino, e se as coisas não são como devem, a culpa é sua’” (Mello e Souza, 2006: 27). Na monarquia eletiva seria necessário encontrar, na cadeia sucessória, a pessoa ideal que incorporasse os anseios dos membros de toda comunidade. Ele se transfiguraria no agente aglutinador de toda a comunidade. O rei teria de imitar os gestos do herói-fundador - de quem é a personificação e a quem está ligado por sucessão - e reformular o mundo controlando as forças desestabilizadoras. No rei se reúnem vivos e mortos, fazendo convergir o natural e o sobrenatural. No Congo, a perpetuação da realeza se deu pela transmissão de insígnias reais que simbolizavam o poder e continham forças mágicas através das quais se estabelecia o elo com o além.
Como bem observa Mello e Souza,
“toda transmissão do poder real requer ritos particulares executados por determinados agentes, envolvendo gestos, falas e insígnias estabelecidos pelas tradições específicas. A identificação entre realeza e divindade, as insígnias atribuidoras de poder e os ritos que o consolidam estão presentes em todas as sociedades nas quais existem um rei ou seu equivalente, agente aglutinador de uma dada comunidade” (2006: 27).
Neste interessante trabalho, a autora, investigando as festas de coroação de reis negros no Brasil, transcorre um longo percurso até a África do século XV na busca de vestígio dessas celebrações naquele continente. Apoiando-se em documentos históricos e relatos de viajantes e cronistas de diferentes épocas, bem como aprofundando-se em inúmeros estudos sobre o tema, principalmente aqueles referentes às populações da África Centro-Ocidental e seu encontro com os portugueses, nos presenteia com um novo e instigante olhar a respeito das reminiscências dessas celebrações.
A análise elaborada pela historiada será o fio condutor de todo este capítulo. Assumi-se aqui, a tese por ela defendida, para compreender melhor o que ocorreu em terras negras na ocasião do encontro com os europeus e como este ato pode ter influenciado as manifestações do reinado ou congado, tão presentes no Brasil. Coloca-se em diálogo com a tese guia desta monografia outras interpretações, já recorrentes, acerca do tema.
Nos conta ela que, Diogo Cão, navegador português, aportou na foz do Rio Zaire em 1483, ocasião em que teve contato pela primeira vez com o mani Soyo, chefe da província de mesmo nome. Era o Congo um reino relativamente forte e estruturado, formado por grupos bantos e abrangendo grande extensão da África Centro-Ocidental. Algumas províncias que formavam o reino eram administradas por membros de linhagens já enraizadas na região e detinham os cargos de chefia há bastante tempo. Outras eram administradas por chefes escolhidos pelo rei, entre os membros da nobreza que o cercavam na capital. Esses chefes permaneciam nas aldeias que governavam por aproximadamente três anos, sendo substituídos em seqüência. Havia, pois, duas classes de chefes: uma dependente do rei em relação aos cargos e às rendas recebidas e outra, independente dele, gozando de direito herdado. O primeiro grupo de chefes era formado por descentes de invasores que se estabeleceram na região conquistando poder político, enquanto o outro grupo era formado por membros de linhagens locais de comando, que tiveram seu poder reconhecido pelos invasores e, com os quais, passaram a estabelecer novas relações políticas. Os dois grupos eram responsáveis por coletar os impostos devidos ao rei e de recolher a parte que lhes cabia do excedente da produção.A unidade do reino era mantida pelo poder real, cercado por linhagens de nobres, que constituíam alianças através de casamentos, fortalecidas pelas relações comerciais e políticas. Apesar da estabilidade do sistema centralizado, disputas de poder abalavam constantemente a harmonia do reino. A capital era mbanza Congo, de onde o rei, com seu conselho real de aproximadamente 12 membros, administrava o Império. Cada nobre pertencente ao conselho tinha função específica: secretários reais, coletores de impostos, oficiais militares, juízes etc.
A formação do reino parece datar do final do século XIV.
Quando aportaram nas áreas do reino do Congo, os portugueses já encontraram um comércio bem desenvolvido com troca de mercadorias como sal, metais, tecidos, peças artesanais e derivados de animais. Um sistema monetário também existia, no qual as conchas nzimbu, coletadas na região de ilha de Luanda, serviam como unidade básica. As relações com os portugueses desenvolveram o comércio regional e internacional, e com ele a importância dos comerciantes, muitos não congoleses.
Os principais interesses dos portugueses no Congo eram o comércio de escravos e o controle das minas. Segundo o relato do visitante alemão Hieronymus Munzer, de 1494, o rei de Portugal manda com freqüência presentes aos líderes africanos com o intuito de ganhar favores e proteção de seus comerciantes nas viagens pelo território africano. Essas relações diplomáticas substituíram as razias realizadas nos primeiros contatos, evitando assim hostilidade nas relações entre os dois reinos, incorporando e respeitando a estrutura de comércio já existente.
Desde o fim do século XV à meados do século XVII, o Congo se manteve relativamente coeso, com o mani Congo exercendo comando sobre as diversas províncias, não sendo, contudo, raras as revoltas em províncias mais distantes da capital. O sentimento de uma comunidade política estava ligado ao cumprimento das responsabilidades tributárias, ao engajamento em guerras de diferentes províncias do reino, ao acatamento do poder central e ao comparecimento em cerimônias reais como as eleições e entronizações de novos reis.
As entronizações reais, e o sentimento de pertencimento a um corpo real, já faziam parte do universo cultural congolês. Esse aspecto da cultura dos habitantes do congo opera a ligação com as práticas de coroação de Reis Negros que se multiplicaram em Portugal e em toda à América nos séculos seguintes. Não por acaso, o nome recorrente dessas entronizações eram, e ainda são, coroação de reis de congo.
- Portugueses, novos deuses...
Chegando à foz do rio Zaire, os portugueses, tomando conhecimento da capital no interior do país, para lá enviaram emissários. Como estes não retornavam, pois estavam retidos devido à curiosidade dos congoleses, os portugueses seqüestraram alguns indivíduos e voltaram com eles para Portugal. Após algum tempo, uma nova expedição retornou à foz do Rio Zaire levando os congoleses que já sabiam algumas coisas sobre o povo português: aspectos dos hábitos, coisas sobre a religião e a língua daquela gente. Juntamente com uma embaixada, levaram vários presentes e foram recebidos em meio a uma grande festa:
“o rei, junto com a sua corte recebeu tal alegria que ninguém, nem por palavras nem por escrito, o poderia dizer, como se todos fossem mortos e ressuscitados, e a chegada daqueles oradores e negros por todo o Reino de repente foi conhecida, e assim uma multidão infinda pela alegria corre a vê-los (Rui de Pina, Relação do Reino do Congo, p. 101. apud. Mello e Souza, 2006: 52)”.
Na cosmologia Congolesa o mundo era divido em dois: o dos vivos e o dos mortos. As águas do mar dividiam o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. Sua terra seria a morada dos vivos enquanto, o mundo desconhecido, além das águas, o mundo dos mortos onde viviam os deuses. [Lembremos que a imagem da virgem surge nas águas do mar.] Ao perceberem a chegada dos navios portugueses pelo mar, e os membros de sua terra, que provavelmente pensavam terem morrido, vivos junto deles, consideraram o episódio um acontecimento espiritual, vendo os portugueses como enviados dos deuses.
Mas os traços que indicam a possibilidade desta interpretação deram-se apenas com os registros históricos referentes ao retorno da embaixada enviada pelo mani Congo à Portugal. Em 1491 quando, novamente, retornam ao império conguês, os portugueses e os jovens negros, instruídos na cultura lusitana, portando vários presentes, objetos religiosos e na companhia de clérigos e artesãos dos mais diversos ofícios são recebidos pela população de Soyo com imensa festa.
A partir do diário de Rui de Sousa, responsável pela expedição portuguesa, podemos ter noção dos acontecimentos que se sucederam a partir de então e, encontrar sinais que apontam para a hipótese acima mencionada, qual seja: a de que os africanos perceberam o encontro com os portugueses e o retorno de seus pares como um acontecimento de ordem espiritual. Rui de Pina, instruído pelos diários do comandante português tentou remontar o acontecimento:
E para isso se ajuntou logo muita gente com arcos e frechas e com atabaques e trombetas de marfim e com violas, tudo segundo seu costume, mui acordado, parecia bem. Vinham todos nus da cinta pêra cima e tintos na carne de branco e d’outras cores em sinal de gram prazer e alegria, vestidos de panos de palma ricos da cinta pêra fundo e com penachos na cabeça fectos de penas da papagayos e d’outras aves diversas que fazem e lhes dam por empresas as gentiis molheres. E o Senhor trazia na cabeça ua carapuça em que andava ua serpente mui bem lavrada d’agulha e mui natural. Eram presentes as molheres dos fidalgos que festejavam favorecendo com grandes vozes e prascer seus maridos, dizendo cada ua que o seu o fazia melhor por serviço d’El-Rei de Portugal a que eles chamavam Zambem-apongo que, antre’eles quer dizer Senhor do Mundo (apud. Mello e Souza, 2006: 53-54).
Estudiosos do início do século XX, apoiados em documentos da época e registros como o anterior, defendem a tese de que em regiões vizinhas ao antigo reino do Congo, pertencentes a uma mesma área cultural que vai da atual região dos Camarões ao deserto do Kalahari, Nzambi era designativo de deus celeste, ser supremo, e Mpungu significando o maior, mais alto, mais destacado. W. G. L Randles, recuperado no trabalho de Marina de Mello e Souza, deduz que havia uma identificação no reino do Congo entre rei e divindade suprema como acontecia em outros reinos da região. Nzambi Mpungu e D. João II estariam sendo percebidos pelos congoleses como a mesma entidade. Randles diz que em Kikongo moderno Nzambi Mpungu significa “‘Deus’”, mas que seu sentido na época dos primeiros contatos com os portugueses parece ter sido “‘Rei Divino’”. Assim, o rei português parece ter sido visto como superior ao rei Congolês por ter vindo de outro mundo onde habitavam os mortos.
Por isso a nobreza Congolesa logo expressou o desejo de participar dos costumes religiosos dos portugueses, como por exemplo, os maiores quiseram ser batizados. E nesse sentido temos, também aqui, traços de que o poder temporal e o mundo sagrado estavam interligados no império do Congo.
Após os batismos, seguindo os conselhos sacerdotais, mandaram que os templos e os ídolos (como falavam os portugueses) fossem destruídos e organizaram, novamente, inúmeras festas. Tanto as festas de batismo, como a recepção da embaixada lusitana, envolveram uma sucessão de situações ritualizadas dos dois reinos que buscavam, sob as especificidades de cada cultura, compreenderem-se mutuamente. Nos dizeres da historiadora:
“enquanto os maiorais trocavam presentes e discursos, cumprindo as respectivas tradições relativas ao encontro de chefes, as pessoas comuns festejavam, levantando as mãos em direção ao mar e gritando em louvor a Deus e ao rei lusitano, ou pelo menos assim o entenderam aqueles que deixaram registro do dia. Mais uma vez, era Nzambi Mpungu que louvavam, o senhor do mundo que, na cosmologia dos congoleses, reinava sobre tudo, de além da grande água que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Nesse momento, o deus Congolês estava provavelmente identificado com o rei de Portugal, que de além-oceano havia enviado seus representantes, portadores de novos ritos religiosos e tecnologia desconhecida” (Mello e Souza, 2006: 57-58).
Dois acontecimentos, em especial, envolvendo ritos e símbolos da cultura Congolesa parecem ter corroborado para a leitura que os governantes do congo fizeram do encontro com os portugueses. Segundo os relatos, um membro da elite batizado com o rei, ao retirar os panos sagrados utilizados no batismo, falou que uma mulher esteve com ele durante a noite e,
com muito prazer me dezia que disesse que agora eras tu com teu Regno guanhado e deu-me por isso tanto esforço que agora sôo me matarei com cento e nom lhe haverei medo: e por isso, Senhor, faze cristãos teus fidalgos e vassalos e co-eles sabe certo que dobrarás em tudo teu grande poder” (Pina. Crónica Del Rei D. João II, p.150. apud Mello e Souza, 2006: 59).
Marina de Mello e Souza lê a referida passagem chamando a atenção para a associação entre conversão e poder e o fenômeno como uma situação de transe. Diz ela que ao ler a narrativa do transe, um irmão do rei, candidato a chefe religioso local, denominado mani Vunda, também disse ter estado durante a noite com a mesma mulher, encontrando ao sair de casa, no dia seguinte, uma pedra diferente a qualquer outra encontrada na região. A pedra tinha a forma de uma cruz, tal qual a utilizada pelo padre na ocasião do batismo. Viram, pois, nesta situação um sinal divino de que o povo Congolês havia encontrado o verdadeiro Deus, tornando-se, a partir de então, mais forte.
Segundo a autora, o que Pina não sabia, era que, “para muitos povos bantos, a cruz era um símbolo de especial importância nas relações entre o mundo natural e o sobrenatural e a representação básica da cosmogonia baCongo, organizada a partir da divisão entre o mundo dos vivos e o dos mortos, um sendo reflexo do outro, e estando ambos separados pela água” (Mello e Souza, 2006: 60).
Assim, ao incorporarem a cruz católica, não estavam eles se apropriando de um símbolo cristão, mas expressando suas crenças tradicionais. Daí ganha mais força a incorporação da cruz encontrada como objeto religioso, posta em local sagrado e festejada juntamente com translado ritual.
Para reforçar o estreitamento de laços entre os dois reinos, ofereceu Rui de Souza, ajuda ao rei conguês em uma disputa contra revoltosos, onde muitos saíram mortos, mas a vitória foi conquistada pelos guerreiros reais. A elite Congolesa passou a ser instruída na fé católica e em costumes portugueses e o mani Congo enviou ao rei de Portugal embaixada dando-lhe notícias dos acontecimentos, agradecendo todos os préstimos, a intenção de multiplicar os conversos e de enviar embaixador à Roma para prestar obediência ao chefe maior da Igreja. A notícia foi recebida com festa em todo o reino de Portugal.
- No Havaí e na África...
Podemos apontar algumas similitudes entre o encontro de portugueses e congoleses com o clássico encontro entre o capitão James Cook e o povo havaiano. A semelhança não está apenas na situação, qual seja, o encontro de civilizações distintas, mas na releitura cultural que se operou a partir de um evento particular. Mais instigante ainda parece a proposta desta aproximação quando nos deparamos com a informação, dada pelo próprio autor, de que a versão original da análise agora oferecida, foi a palestra Frazer (de 1982) onde destacava-se a teoria da soberania divina havaiana. Como se percebe, é novamente a relação soberano e divindade que nos rouba a cena.
Assim como Cook, a empresa portuguesa estava imbuída do projeto colonialista marítimo. Os ingleses, no auge do desenvolvimento do modelo capitalista, os portugueses no início deste processo. E se para os primeiros o ímpeto civilizacional era o motor do ideal humanista que impunham aos diferentes povos do mundo, para os segundos, a cruz ocupava este lugar. Para os portugueses daquela época, humanidade andava junto com cristandade. Foi, impulsionado por estas duas noções que Portugal travou contato com os africanos congoleses no século XV.
Pode-se justificar, também, a comparação com o caso havaiano e a utilização da arguta teoria de Sahlins tendo em vista a perspectiva histórica que o presente trabalho utiliza. Não apenas porque conta com toda uma abordagem histórica sobre a manifestação estudada e de importantes trabalhos de historiadores acerca do tema, mas porque, acredito, como assinalou Sahlins, que “as circunstâncias contingentes da ação não se conformam necessariamente aos significados que lhes são atribuídos por grupos específicos, sabe-se que os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais. É nesses termos que a cultura é alterada historicamente na ação. Poderíamos até falar de ‘transformação estrutural’, pois a alteração de alguns sentidos muda a relação de posição entre categorias, havendo assim uma ‘mudança sistêmica’” (2003: 7).
Diferente do caso havaiano, analisado por Sahlins, não temos aqui, vasto material a respeito do encontro ocorrido entre lusitanos e africanos no século XV. Contudo, podemos nos basear nas informações que o trabalho que nos vem guiando oferece. Sem dúvida, encontramos nele uma quantidade significativa de pistas que me faz crer que os dois fenômenos, não sendo idênticos, e nunca o seriam, possuem uma natureza semelhante. Outros são os cenários, e diferente também são os desfechos, mas as trocas e reinterpretações que operam os ligam de maneira incontestável.
Nos conta Sahlins que uma série de coincidências conduziu o famoso capitão inglês a sua identificação com o deus Lono havaiano, deus da fertilidade celebrado todos os anos, e sua conseqüente e inevitável morte. As contingências fizeram com que os acontecimentos tivessem forte paralelo com a estrutura ritual prescrita pelo mito de Lono.
O capitão Cook chega a Maui, litoral norte da costa havaina no natal de 1778, festa de ano-novo (Makahiki), “pelo calendário havaiano, quinto dia do décimo segundo mês lunar, ou exatamente o meio do caminho do tumultuado circuito de Lono, isto é, o circuito à direita da ilha” (Sahlins, 2003: 156). O capitão fazia, exatamente, o mesmo percurso no mesmo tempo. Chegando à praia, foi recebido com exultação por milhares de havaianos. Levado ao templo do referido deus, “se tornou o ícone daquele ícone”. Foi untado com coco mascavo, alimentado pelo sacerdote enquanto os acólitos entoavam os cantos tradicionais. O capitão, sempre deixando ser dirigido pelo calor dos nativos.
Sucederam trocas de presentes entre as duas partes, e Cook, paramentado de diferentes maneiras, foi “adorado” enquanto uma figura divina. Segundo Sahlins, “de acordo com todas as evidências, o modo de troca dos sacerdotes com Cook era realmente sacrificial” (2003:1 60).
Na seqüência de acontecimentos, o furto do barco guarda-costas do Discovery, que de acordo com os relatos, teria sido obra do chefe Pahea e estaria relacionado, segundo o ritual Makahiki, ao confisco agressivo das dádivas de Lono pelo chefe guerreiro, acabou por culminar na partida dos ingleses. Em virtude dessa, e de outras coincidências,
“Cook fizera uma retirada ritual quase perfeita no dia 3 de fevereiro. A cronometragem, por si só, já estava muito próxima da perfeição, isso porque os rituais do Makahiki terminariam no dia 1º de fevereiro (mais ou menos um dia) o que corresponderia ao décimo quarto dia do segundo mês havaiano” (Sahlins, 2003: 161).
Completando, então, a corrente de coincidências, ocorreu no dia 1º de fevereiro a morte de um marinheiro da tripulação, dia cerimonial em que o deus-vivo do rei engoliria o olho do primeiro sacrifício humano do Ano-Novo. E foi o próprio rei quem pediu que o morto fosse enterrado no templo do deus Hikiau. O antropólogo, então, diz que para lermos o desencadeamento desses eventos é preciso “utilizar daquilo que foi chamado de uma ‘estrutura da conjuntura’: um conjunto de relações históricas que, enquanto reproduzem as categorias culturais, lhes dão novos valores retirados do contexto pragmático. Chefes, sacerdotes e britânicos, todos seguiam sua tendências e interesses recebidos. O resultado foi um pequeno sistema social, completo com alianças, antagonismos – e uma certa dinâmica” (Sahlins, 2003: 60).
No dia 4 de fevereiro, Cook partiu da baía de Kealakekua. O rei tinha sobrevivido a visita do deus e reabriria os santuários agrícolas de Lono. Só que, uma forte tempestade quebrou a proa do Revolution, forçando os navios a retornarem para o litoral. A volta inexplicável de Cook, Lono, causa então uma crise mitopolítica na sociedade havaiana. Ao retornar a terra em momento inapropriado, durante o triunfo do rei, o deus reabria toda problemática em torno da soberania. Daí seguiu-se um surto de roubos e violências que os ingleses não conseguiam compreender. Cook, no dia 13 de fevereiro, ao se ver obrigado a utilizar a força, desencadeia uma disputa que remete a batalha culminante do Makahiki. Para impedir a morte do rei, o deus é assassinado. Lono é morto ritualisticamente!
Confirmando a concepção da transfiguração de Lono em Cook e sua morte segundo os ritos celebrados todos os anos em homenagem a esse deus, Sahlins nos mostra, a partir dos diários de bordo dos tripulantes presentes na esquadra inglesa que, mesmo após a morte de Cook, continuaram os sacerdotes a prover os navios com alimentos e que dois sacerdotes se dirigiram até o Revolution, levando escondido um pedaço do corpo do capitão, e perguntaram quando o deus retornaria e o que faria com eles, fazendo crer a todos que consideravam Cook uma entidade superior. Na verdade, como em todos os anos, obedecendo o mito, esperavam que Lono retornasse.
Essa história foi contada para mostrar que um evento possui forças próprias capazes de irromper transformações dentro de um sistema simbólico. E que, se este evento for lido dentro de um esquema cultural específico adquire uma determinada “significância histórica”. É por isso que Sahlins nos diz que:
“aquilo que é contingente só se torna plenamente histórico quando é significativo: somente quando o ato pessoal ou o efeito ecológico toma um valor de posição ou valor sistemático em um esquema cultural. Uma presença histórica é uma existência cultural. E foi assim que o efeito específico da individualidade de Cook foi mediado pela categoria (ou categorias) cultural que ele representa, enquanto indivíduo lógico” (2003:145).
Como conclui o antropólogo, ele se tornou, a partir de universos cognitivos diferentes, tanto para os havaianos, quanto para os ingleses ou europeus de um modo geral, a imagem de um ser especial. Para os havaianos, sua presença em determinada situação e participando de um desencadeamento de eventos contingentes, mas que coincidiam com os atos rituais esperados, o transformaram no deus da fertilidade Lono. Para os ingleses, e de maneira mais geral, para a historiografia ocidental moderna, sua trágica morte num período determinado da história, a expansão comercial e a empresa civilizacional, o transformou num mártir. Nas palavras de Sahlins, num “Lono Burguês”. A “hubris de Cook foi tanto polinésia quanto européia” (2003: 168).
Assim como no caso havaiano, no caso africano uma sucessão de episódios e coincidências passou a cadenciar a relação que surgia. O retorno da esquadra que trazia os dois africanos feitos reféns na viagem de Diogo Cão irrompe a cadeia de acontecimentos. Assim como nas ilhas do Pacífico, a chegada das caravelas foi motivo de grande festividade. Sempre que retornavam de terras européias os homens eram reverenciados com danças, músicas, presentes e banquetes. Também aconteciam entre eles trocas de dádivas e gestualidades rituais, cada qual seguindo os princípios de sua cultura e interpretando esses gestos sob seus parâmetros. Cada qual visualizando aquele encontro através de seu universo cosmológico.
Para MacGaffey, antropólogo dedicado ao conhecimento da cultura bacongo e lido a partir do trabalho de Mello e Souza, o acontecimento definidor da forma como os congoleses receberam os portugueses e sua religião foi o retorno dos reféns em 1485. Seriam eles, vistos como sobreviventes de uma iniciação excepcional nos poderes dos mortos, sendo o batismo cristão, uma nova iniciação em uma mais poderosa versão do culto local.
Na cosmologia Congolesa contemporânea, o mundo está dividido em duas partes complementares: o mundo dos eventos perceptíveis e o das causas invisíveis, provocadora de acontecimentos percebidos. O primeiro é habitado por gente negra, que nele aparece e desaparece pelo nascimento e pela morte e onde sofrem influências de forças ruins contra as quais buscam a proteção nos poderes do bem. O segundo é habitado por ancestrais e espíritos diversos que afetam a vida das pessoas do primeiro mundo diretamente ou por intermédio de líderes religiosos. Para os bacongos, todo acontecimento excepcional, fasto ou nefasto, é explicado com referência ao outro mundo. Seus rituais estão centrados na água ou em túmulos, as duas principais vias de comunicação com o outro mundo.
Randles, acredita não haver dúvida que o oceano é o domínio do além para aquele povo, lugar onde se encontram os mortos, que seriam brancos como os albinos. Para o autor, o aparecimento dos portugueses foi um acontecimento traumático, por terem surgido do mar, sendo associados ao domínio do sagrado. Os mortos, para os baCongos, espíritos brancos, requerem homenagens e presentes e podem conferir poderes aos vivos. Os ritos de iniciação contam com um enclausuramento durante um certo período no mundo dos mortos, o que ligou diretamente a crença ao acontecimento dos congoleses feitos reféns e que retornaram um tempo depois. Os portugueses passaram, pois a serem associados ao reino da sabedoria, à fonte de poder e riqueza.
Para MacGaffey “‘o padrão estabelecido logo nos primeiros contatos permitiu que Portugal e o Congo, por séculos, se relacionassem orientados por pressuposições falsas, mas eficazes, tomando-se conceitos análogos como idênticos. Assim, as estruturas nativas foram em grande parte conservadas, cada povo lendo a realidade conforme as sua concepções’” (apud. Mello e Souza, 2006: 66).
De modo geral, a interpretação dos autores parece indicar que o resultado dessa interação seria o desenvolvimento de um catolicismo africano, no qual os missionários portugueses viam o expandir de sua religião, e as populações Congolesas a sua forma tradicional de reverenciar os deuses e relacionar-se com o além. Os congoleses aceitaram ritos e insígnias cristãs como novo meio de lidar com antigos conceitos.
John Thornton “‘argumenta que o cristianismo africano não foi fruto de uma combinação de cosmologias, e sim dinamicamente construído, resultado da forma de interação e validação das revelações ocorridas. No Congo, a mais bem sucedida missão de conversão na África, as revelações e suas reavaliações foram muitas vezes aceitas tanto pelos portugueses como pelos congoleses, porém nem sempre’” (apud. Mello e Souza, 2006: 67).
Assim como no caso havaiano, um evento histórico particular, impulsionado por uma relação de contato e trocas simbólicas, promoveu a releitura que o povo Congolês fazia do universo sobrenatural. A visão banto do mundo, associada ao encontro com os portugueses e os ritos que partilharam, fez surgir um outro movimento religioso pautado na troca e na forma africana de conceber o mundo e de receber elementos culturais estrangeiros. A cruz se tornou um nkisi (objeto de culto tradicional desse povo), os missionários católicos ngangas (chefes religiosos), e D. João II, Nzambi Mpungu. Se no plano religioso essa foi a principal inovação, no político, a forma organizacional, também pautada em traços culturais portugueses, como a absorção de títulos e nomes da hierarquia real lusitana deu cara à organização política local. Podemos dizer que o que houve, foi como no caso de Ilhas de História, “a realização prática das categorias culturais em um contexto histórico específico,“que” se expressa nas ações motivadas dos agentes históricos, o que inclui a microssociologia de sua integração” (Sahlins, 2003: 15).
- Em Portugal e no Brasil...
Tendo sido esclarecido que o hábito da entronização de um rei africano se desenvolveu, desde seu início, associado ao batismo e à conversão dos negros ao catolicismo, podemos compreender melhor a presença de reis e rainhas negros, inclusive a celebração de sua entronização, na festa (de Reinado) que os negros fazem em louvor à Nossa Senhora do Rosário. Festa esta que se vê realizar no Brasil, desde os tempos da escravidão, na qual os pretos (pobres, ou melhor, aqueles que não se converteram ao catolicismo oficial e a todos os cânones da civilização branca) fazem viver uma corte (governo) e uma santa (religião) que continuam sendo, para eles, não mais que um ganho espiritual nos termos de sua religiosidade negra inicial.
Mas prestemos atenção às histórias do surgimento da festa de Reinado ou da celebração de reis negros devotados ao catolicismo.
Em Portugal, no século XV, os africanos se distribuíam entre escravos e homens livres, não sendo grandes as diferenças entre os dois grupos. No entanto os negros eram convidados a participar das festividades oficiais da corte portuguesa. Suas músicas e danças exóticas compunham os cortejos comemorativos da coroa ibérica. Mas para folgarem à sua maneira nos domingos e celebrarem os dias santos, já adaptados ao calendário português, a abertura não era a mesma. Eram sempre acusados de roubos ou de planejarem rebeliões e fugas durante essas ocasiões. Já em 1559 essas festividades foram proibidas na área de uma légua ao redor de Lisboa. Um pouco depois, em 1563, nos contam relatos que o corregedor de Colares, a vinte e cinco quilômetros de Lisboa, acabou com uma festa de negros onde havia sido eleito um rei. Porém, se as festividades de negros eram proibidas pelas autoridades administrativas, na esfera religiosa eram muitas vezes aceitas. À sua maneira, os negros celebravam à Virgem Maria cantando, tocando e dançando em ritmos africanos, inclusive, dentro das igrejas.
Como visto, o costume dos negros de coroarem reis, mesmo sem a denominação de reis de Congo, já estava presente em Portugal desde o século XVI e, segundo o historiador Saunders (apud. Mello e Souza, 2006), se reuniam em Irmandades para celebrarem Nossa Senhora do Rosário, pelo menos, desde 1494. Ou seja, a tradição da coroação de reis negros e a devoção à Nossa Senhora do Rosário, ligada à estruturação de Irmandades, remonta, pelo menos, à Portugal do século XV.
A disseminação da devoção à Nossa Senhora do Rosário está ligada à ação dos dominicanos desde a idade média. Foram os dominicanos os responsáveis pela evangelização dos habitantes do Congo e a aceitação destes ao culto mariano tem uma série de explicações. A maior parte delas está associada a um elemento em particular: o rosário. Primeiramente porque seria ele responsável por uma ligação direta a Deus, já que a devoção ao rosário teria sido dada pelos céus, e não instituída na terra. Em segundo lugar por estabelecerem uma identificação do rosário com objetos mágicos pertencentes à religiosidade africana como os minkisi, renomeados pelos portugueses de fetiches.
“‘José Ramos Tinhorão, que entende que o catolicismo foi sempre integrado às comunidades negras por meios das ‘exterioridades do culto’ e não pela ‘assimilação dos conceitos teóricos da fé’, conclui que os negros elegeram Nossa Senhora do Rosário para objeto de culto por terem estabelecido uma relação direta entre o seu rosário e o ‘rosário de Ifá’, usado por sacerdotes africanos’” (apud. Mello e Souza, 2006: 161).
A constituição das irmandades é entendida como uma forma de integração dos africanos e seus descendentes na sociedade dominante, mas também pode ser vista como uma via de religação destas pessoas exiladas, entre si, e com elementos da religiosidade negra. Saunders diz que entre os traços que aproximariam esta estrutura religiosa da tradicional estariam “o hábito de rezar em conjunto, o culto aos santos (que podiam ser identificados a espíritos e deuses secundários de religiões africanas), a condução dos ritos por um sacerdote e as procissões com danças. Diz ainda que até mesmo a crença em demônios e bruxaria podia ser facilmente entendida pelos africanos. Entretanto, destaca que talvez o principal fator que levava à conversão era que esta era a chave da aceitação social” (apud. Mello e Souza, 2006: 161).
Essas explicações, de alguma forma, são capazes de oferecer pistas sobre a relação entre a devoção dos negros à Nossa Sra. do Rosário e sua organização em irmandades. Contudo, outras análises como a levantada por Tinhorão entre o rosário mariano e o rosário de Ifá, este último mais comum entre os povos Yorubás do que entre os povos Bantos e a tese do poder, mais enfatizada por Saunders, onde as relações de dominação ganham maior importância do que a incorporação e as trocas culturais entres os dois povos, merecem maior cuidado. Mas, o importante a destacar é que a devoção dos negros à Nossa Sra. do Rosário e sua organização em irmandades foi recorrente não só em Portugal, como na Espanha e em toda a América Espanhola e Portuguesa. Há relatos destas celebrações, por exemplo, no Haiti, em Buenos Aires e em Cuba. Como nos diz Mello e Souza, “a organização de africanos e seus descendentes em irmandades leigas foi um dos padrões sociais comuns à vasta região que constituiu o universo de relações escravistas e coloniais em torno do oceano Atlântico” (2006:162).
No Brasil, em carta datada de 1552, o jesuíta Antônio Pires relata, em Pernambuco de 1674, a organização dos negros em Confraria do Rosário e a coroação de reis de Congo, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Recife. Contudo, só a partir do século XVIII é possível encontrar pistas mais consistentes sobre as coroações de reis negros. Estas deram-se predominantemente nas “ ‘Irmandades de homens pretos’ – associações leigas formadas por negros, escravos, forros ou livres, em torno de um santo protetor e de um altar no qual este era cultuado. Essas corporações cumpriam diversas funções de ajuda mútua, socialização e diversão. Mesmo existindo notícias de eleição de reis negros por grupos de negros que não estavam organizados em Irmandades, foi nesses espaços que se desenvolveu a festa de reis negros.
“As irmandades foram elementos fundamentais no exercício de uma religiosidade colonial e barroca, caracterizada pelo culto aos santos, pelas devoções pessoais e pela pompa das procissões e festas, marcada pela grandiosidade das manifestações exteriores da fé, na qual conviviam elementos sagrados e profanos. A essas especificidades do catolicismo colonial agregava-se um caráter prático e imediatista, que buscava consolo e soluções para as questões do cotidiano, principalmente por meio da interferência dos santos, aos quais eram dirigidas promessas que seriam cumpridas mediante o alcance da graça pedida” (Mello e Souza, 2006: 183-184).
A eleição dos reis era acompanhada pela escolha de uma série de outros cargos compondo o que Marina de Mello e Souza chamou de “cortes festivas”, remetendo, assim, às cortes européias e africanas. Paralela à corte real que saía às ruas durante as festividades, existia também uma estrutura administrativa composta por juízes, provedores, tesoureiros escrivãs, procuradores que gerenciavam as necessidades cotidianas das irmandades. “O hábito de recolher donativos em nome dos reis da festa se ligava ao modelo lusitano das folias, mas também ao universo sócio-cultural banto, pois na África Centro-Ocidental as aldeias enviavam tributos aos reis e chefes tribais” (Mello e Souza, 2006: 209).
Segundo o trabalho da etnomusicóloga Glaura Lucas, Os Sons do Rosário, realizado com as Irmandades do Jatobá e dos Arturos, em Minas Gerais, o registro mais antigo do congado,
“é o de André João Antonil, que, em sua obra de 1711, deu notícia do costume dos negros de criarem reis, juízes e juízas, por ocasião das festas de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito. Vinculada às origens do Congado em Minas há também a história de Chico Rei, antigo rei africano que teria vindo como escravo para Vila Rica no século XVIII, e após ter conquistado sua liberdade e ajudado na alforria de vários escravos, construiu no bairro do Alto da Cruz uma igreja para o culto de Santa Efigênia, sendo depois coroado rei da festa de Nossa Senhora do Rosário pelo bispo de Diamantina” (Lucas, 2002: 46).
A permissão ou proibição para a realização das festividades negras variaram muito. De um lado existiam os que defendiam a realização dos ritos como forma de domínio e controle de possíveis exaltações. Acreditavam os senhores que se os negros tivessem espaço para extravasarem suas tensões e angústias acumuladas pela condição de escravos e o árduo peso do trabalho, se revoltariam menos e retornariam mais bem dispostos para o trabalho. Por outro lado, existiam aqueles que repudiavam completamente a realização destes agrupamentos, vendo nessas ocasiões situações potenciais para rebeliões e motins.
Com relação à Igreja as posturas eram as mesmas. Havia os clérigos que permitiam a realização dos festejos nas igrejas, mas na maioria das vezes a não abertura das igrejas para abrigar essas tradições obrigou os negros a construírem templos próprios para suas celebrações. É importante destacar, que em um passado recente, as autoridades eclesiais da Igreja Católica, proibiram a realização dos ritos do congado dentro de seus templos, sendo estes abertos novamente à tradição negra por volta da década de 60 do século passado.
Mesmo sendo recorrentes as festas de coroações de reis negros em todo o Brasil, cada localidade, assim como cada festa, possuía, como ainda possui, formatações específicas. Se as figuras dos reis e rainhas coroados constituem um núcleo comum a elas, seus nomes, sua estrutura ritual, os cortejos públicos, sua performance, seus ritmos são enormemente variados.
Os congados mineiros, como os dos interior de São Paulo e Goiás, guardam enormes diferenças entre si, assim como essa manifestação de coroação de reis expõe suas especificidades diante dos festejos do maracatu pernambucano ou das festas das taieiras sergipenses entre outras.
Este trabalho é direcionado à manifestação do Reinado mineiro, especificamente, a forma que se apresenta no entorno da capital. Antes de nos determos nas festividades do presente, gostaria, brevemente, de passar pelas descrições das festas de coroação de reis negros em minas do século XIX registradas pelos viajantes que aqui estiveram.
- Na literatura de viagem e na crônica...
Nem história nem ficção, gerada pela experiência da viagem e do estranhamento, a literatura de viagem compõe um gênero específico de escritura que adquiriu grande importância editorial com a descoberta do Novo Mundo, constituindo ainda hoje importante fonte de informação para diferentes áreas do conhecimento.
O Brasil recebeu vários viajantes, de diferentes origens, sendo a grande maioria composta de franceses, alemães e ingleses. Para Minas Gerais, Ilka Boaventura Leite aponta para a presença de 45 viajantes nos séculos XIX e XX , que produziram algo em torno de 55 relatos de viagem (1996: 23).
Uma dessas tantas festividades barrocas descritas pelos viajantes, principalmente em Minas Gerais, foram as coroações de Reis Negros, organizadas pelas Irmandades do Rosário do Homens Pretos, em sua grande maioria, e que também despertavam o fascínio e o estranhamento dos estrangeiros. Mistura! Con-fusão!
A associação direta e, quase obrigatória, entre as coroações de reis negros e as irmandades talvez se deva ao encontro com essas festividades nas vilas e cidades. Pelo menos não me lembro de ter encontrado em nenhum dos relatos sobre Minas menção destas mesmas festividades no interior do estado, nos povoados ou fazendas isoladas. Faço essa observação para destacar que se essas festividades aparecem diretamente associadas às irmandades, não eram obrigatoriamente condicionadas a elas. Assim como hoje, naquele tempo, uma infinidade de celebrações de reis negros possivelmente se realizava nos mais longínquos e isolados grotões de Minas.
Spix e Martius assim descreveram uma festividade de reis negros no Tejuco na ocasião da festa de Sagração da Independência:
“Também os negros esforçaram-se por festejar, a seu modo, essa extraordinária solenidade patriótica; para isso, acharam justamente então mais adequado escolherem um rei dos pretos. É costume dos negros do Brasil nomearem todos os anos um rei e sua corte. Esse rei não tem prestígio algum político nem civil sobre os seus companheiros de cor; goza apenas da dignidade vaga, tal como o rei da fava, no dia de Reis, na Europa, razão por que o governo luso-brasileiro não opõe dificuldade alguma a essa formalidade sem significação. Pela votação geral, foram nomeados o rei Congo e a rainha xinga, diverso príncipes e princesas, com seis mafucas (camareiros e camareiras), e dirigiram-se em procissão, à igreja dos pretos. Negros, levando o estandarte, abriam o préstito; seguiam-se outros levando as imagens do Salvador, de São Francisco, da Mãe de Deus, todas pintadas de preto; vinha depois a banda de música dos pretos, com capinhas vermelhas e roxas, todas rotas, enfeitadas com grandes penas de avestruz, anunciando o regozijo, ao som de pandeiros e chocalhos, de ruidoso canzá e da chorosa marimba; marchava à frente um negro de máscara preta, como mordomo, de sabre em punho; depois, os príncipes e princesas, cujas caudas eram levadas por pagens de ambos os sexos; o rei e a rainha do ano antecedente, ainda com cetro e coroa; e, finalmente, o real par, recém-escolhido, enfeitado com diamantes, pérolas, moedas e preciosidades de toda espécie, que haviam pedido emprestado para essa festa; a rabadilha do séqüito era composta da gente preta, levando círios acesos ou bastões forrados de papel prateado. Chegando à igreja da Mãe de Deus, preta e só de negros, o rei deposto entregou o cetro e a coroa ao seu sucessor, e este fez então uma visita de gala, na sua nova dignidade, ao intendente do Distrito-Diamantino, com toda a sua corte. O intendente, já prevenido dessa visita, esperou o seu hóspede real em camisola de dormir e carapuça. O recém-eleito, negro fôrro e sapateiro de ofício, ao avisar o intendente, ficou tão atrapalhado que, ao ser convidado para sentar-se no sofá, deixou cair o cetro. O delicado Ferreira da Câmara apanhou-o, e, rindo, o restituiu ao rei já cansado, com as palavras: - ‘Vossa Majestade deixou cair o cetro!’. O coro musical exprimiu com barulhenta toada a respeitosa gratidão pelo gesto do intendente, e, finalmente, saiu toda a multidão, depois de haver, segundo o costume dos escravos, dobrado o joelho direito diante das pessoas da casa, e, caminhando alegremente pelas ruas, o rei e a rainha voltaram às suas choças. O mesmo espetáculo repetiu-se no outro dia, mas com umas variantes. O novo rei dos negros recebeu oficialmente a visita de um enviado estrangeiro à corte do Congo (a denominada congada). A família real e a corte, em roupas de gala, dirigiram-se com pompa à praça do Mercado; o rei e a rainha sentaram-se em cadeiras, à sua direita e esquerda, acomodaram-se, em bancos baixos, os ministros, camareiros e camareiras e os mais dignitários do reino. Deante deles, estavam colocados, em dupla fila, os músicos da banda, com sapatos amarelos, e vermelhos, meias pretas e brancas, calças vermelhas e amarelas, com capinhas de seda, todas rotas, e faziam uma algazarra infernal com tambores, flautas, pandeiros, chocalhos e com a chorosa marimba; os dançadores anunciaram o enviado com pulos e cabriolas, com as mais singulares caretas e as mais profundas mesuras, e traziam os seus presentes, apresentando tão bizarro espetáculo, que se imaginava estar deante de um bando de macacos. Suas Majestades pretas a princípio repeliram a visita do estrangeiro, mas acabaram recebendo-o com estas palavras: - ‘Que lhe estavam abertas as portas e o coração do rei’. O rei do Congo convidou o enviado a tomar assento à sua esquerda, e, ao som da música ruidosa, fez distribuição de comendas e bastões espanhoes.
Concluiu-se, afinal, a festança com brado do rei dos pretos, que o seu povo todo reunido repetiu; - ‘Viva el-rei d. João VI !’ – Quão interessantes são as reflexões do pensador, que, em retrospectiva visão, recorda as passagens dessa estranha festa!” (1938: 129-130)
Fica impossível não associarmos, com a riqueza de detalhes da descrição que nos foi oferecida pelos viajantes, elementos da descrita celebração com outros tantos, antes mencionados, relativos ao encontro entre os congoleses e portugueses e as festividades da atualidade. Parece se formar um rastro de elementos que acompanharam e continuam acompanhando estas festividades até os dias de hoje. Mas isso é questão para um outro trabalho... Voltemos ao ponto.
Vê-se no relato que as associações entre as celebrações dos negros e a estrutura social do período projetam uma inversão imaginária de poder, que só tem lugar no espetáculo social porque não oferece risco algum ao poder estabelecido. Podemos dizer que a visão de Spix e Martius se confunde com a visão de todos os não-negros espectadores de tal celebração, olhando para os reis negros e seus súditos enquanto uma “dignidade vaga”, “uma formalidade sem significação”.
Esse olhar está presente na maioria das descrições sobre essas festividades. É muito difícil encontrarmos descrições que enfatizem ou mesmo mencionem a dimensão sagrada destes ritos, seus fundamentos mágicos. Os cargos descritos são sempre aqueles cuja significação pode ser espelhada na estrutura hierárquica vigente: mordomos, juízes, pagens etc... Onde estão os capitães, os líderes espirituais? A celebração vem sempre ao lado das imagens dos santos, à Igreja dos pretos, mas seu sentido religioso é vago, se perde em meio às preocupações do universo cosmológico daqueles que assistem, de longe, esses cortejos. Fora desse plano podemos notar apenas a presença dos instrumentos musicais africanos, desconhecidos dos narradores, e que poderiam ter uma associação direta com o universo mágico para os partícipes da festa ou, como sugerido por Marina de Mello e Souza, que discute essa mesma passagem, a máscara negra utilizada durante a celebração e que, segundo ela, seria um “elemento presente nos rituais mágicos das culturas africanas” (2006: 280).
Não é de se estranhar, mesmo que de um ponto de vista diferente, que a maioria das descrições e dos estudos sobre essas mesmas manifestações a partir do século XX também adotem uma análise e uma visão das “congadas”, sempre associadas à relação com o poder político dominante. Elas deixam de ser uma “dignidade vaga”, uma “formalidade sem significação”, para tornarem-se um espetáculo de cores e sons representativos da riqueza cultural brasileira, ainda vivos e presentes graças à resistência político-cultural dos negros, explícita na inversão simbólica do poder que operavam. Novamente ganham um sentido que lhes é atribuído pelos de fora. Mas e o sagrado, contagioso, onde se encontra?
Consegui encontrar em os Reis Negros no Brasil Escravista, duas citações que parecem evidenciar a presença deste universo sagrado, expressa em cargos existentes na estrutura da manifestação e que causam grande estranhamento. “Entre os cargos listados nos documentos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Nazaré Paulista para os anos 1803-18013 e 1813-1825, aparece o de “tambor”, ocupado sempre pela mesma pessoa: o irmão Sebastião, escravo de Maria da Conceição. É o único cargo ocupado pela mesma pessoa por longo período de tempo e, mesmo não aparecendo nos registros de todos os ano, provavelmente estava sempre presente na festa, desempenhando papel central e dependendo de perícia particular. O tambor e seu tocador eram personagens fundamentais em ritos religiosos e festividades africanos, acontecendo o mesmo no Brasil, sendo provavelmente o escravo Sebastião pessoa especialmente respeitada pela comunidade, devido ao seu saber relativo a toques e ao tratamento ritual do instrumento” (Mello e Souza, 2006: 213-214).
A existência deste cargo e suas características nos oferecem pistas para as associações que quero apontar. Suposições, alerto.
A relação com os tambores, hoje (ou ainda hoje), é de ordem explicitamente sagrada. A relação que os membros das irmandades estabelecem com o este instrumento musical (e mesmo com vários outros) envolve toda uma mística ligada ao processo ritual de sua confecção, ao tratamento que lhe é dado antes das festividades e seu lugar dentro do mito de origem. A existência de um cargo “tambor”, evidência a antropomorfização deste instrumento, sua animação, lhe confere agência. O fato deste cargo ser ocupado por uma única pessoa durante longo tempo, aponta, não somente para a sua habilidade de tocador, como também para uma ocupação tradicional do cargo ligada a sua hereditariedade, para um cargo vitalício, associado aos conhecimentos tradicionais daquele que o ocupa. Encontramos, pois, na existência de tal cargo uma pista para a associação que quero chamar a atenção.
Uma outra pista acha-se em um outro lugar. O cronista Mello Moraes e Filho escreveu no final do século XIX sobre as festividades de coroação de reis negros do Rio de Janeiro:
“‘Atrás da música caminhavam majestosamente o Neuvangue (rei), Nembanda (rainha), os Manafundos (príncipes),o Endoque (feiticeiro), os Uantuafunos (escravos, vassalos e vassalos do rei), luzido e vigoro grupo daquelas festas tradicionais e genuinamente africanas (...)’” (apud. Mello e Souza, 2006:216).
Seguindo sua descrição vemos que ele fornece o nome dos cargos do cortejo em caminhada em língua nativa traduzindo-os em seguida para o português. Entre os cargos apontados encontra-se o de Endoque, traduzido como feiticeiro. Seu apontamento nos faz crer que realmente, entre os cargos existentes nestas festividades existiam aqueles ligados à estrutura sagrada, ao universo mágico. Eu me atrevo a associar o Endoque aos capitães, ou lideranças espirituais das guardas atuais. É lícito imaginar que, diferente de muitos observadores destas manifestações Mello Moraes e Filho estabeleceu uma relação mais próxima com aqueles que observava, permanecendo não apenas numa posição contemplativa, mas interrogando os atores do evento, o que lhe deu acesso a um universo mais particular da manifestação. Isso quer dizer que a distância e o olhar enviesado dos observadores e comentadores destas celebrações não foi capaz de captar o universo místico dessas celebrações, universo esse mais íntimo, se concentrando naquilo que lhes parecia oferecer um sentido mais imediato.
É na busca por essa dimensão do sagrado que invisto o meu olhar sobre essa rede festiva. Da análise histórica e teórica até agora reportadas, passo à etnografia propriamente dita ao descrever a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Ibirité e todas as demais com as quais me encontro.
A festa dos homens pretos nas terras do PantanaA Irmandade de Nossa Sra. do Rosário de Ibirité é, hoje, um dos grupos de congado mais tradicionais do entorno de Belo Horizonte. A Irmandade foi fundada onde, um dia, se ergueu a Fazenda do Pantana, sede de uma das maiores sesmarias de Minas e também um dos maiores centros de distribuição de produtos agrícolas do estado.
A Fazenda do Pantana foi herdada pela famosa Dona Pulquéria de Freitas, conhecida por “Madrinha do Pantana”, mulher de origem negra e de gênio forte, que fôra casada com o Sr. Joaquim de Freitas, primeiro detentor das terras cedidas pelo Rei de Portugal Dom João VI no início do século XIX. Era ela a proprietária das terras que abrigava uma das mais famosas minas de Minas Gerais, a mina do Morro Velho, localizada no município de Nova Lima. O atual município de Ibirité ocupa, hoje, grande porção das terras da antiga fazenda do Pantana, guardando, ainda de pé, a antiga sede da fazenda.
É impossível apontar, com precisão, o início dos festejos do Rosário nas terras da “Madrinha do Pantana”. Sabemos, apenas, da existência de uma antiga capela do Rosário, hoje demolida, que fora erguida pela então proprietária das terras e de um contingente significativo de escravos na região.Segundo fontes orais, tem-se conhecimento dos festejos já no início de 1890, quando uma briga interna provocou uma cisão dando origem à irmandade mais antiga de Belo Horizonte, hoje tombada pelo patrimônio municipal: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá. Segundo estes mesmos relatos, naquela época, participavam dos festejos da irmandade antigas guardas, hoje já extintas, como a velha guarda de Moçambique do município de Mateus Leme.
O primeiro registro da Irmandade, com o nome oficial de Sociedade de Nossa Senhora do Rosário de Ibirité, se deu em 15 de janeiro de 1950. Período em que era necessária a aquisição de licença, junto às autoridades policiais, para a realização das festas e cuja entrada na igreja, dos festejos do Reinado, era proibida.
Da influência do congado na história do município tem-se o registro de que a Fazenda do Rosário, nome dado ao local onde foi erguida a Fundação Helena Antipoff, foi uma homenagem prestada ao congado pela importante pesquisadora. Segundo consta, em visita ao distrito de Ibirité, ainda nem emancipado, para escolha do local onde construiria seu projeto educacional, Helena se deparou nas ruas com a celebração dos homens pretos querendo saber, encantada e curiosa, do que se tratava. Ao saber que era uma festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário, decidiu nominar o local escolhido por ela para realização de seus planos de Fazenda do Rosário e mandou erguer na entrada da área uma capela em louvor à Santa.
Segundo as falas de membros da irmandade, a época de maior efervescência dos festejos do Reinado de Ibirité se deu sob o comando de Dona Liquinha, antiga rainha conga, e de seu esposo José Basil, antigo general da irmandade.
Dona Liquinha era avó da atual rainha conga Gessy de Araújo, conhecida como Tuca, e madrinha do afamado capitão de Moçambique do Jatobá, João Lopes. A coroa de Dona Liquinha foi dividida, durante anos, com a Irmandade do Jatobá, onde também era rainha conga e onde exerceu um papel de destaque. Sob o seu comando, o congado era conduzido à mãos de ferro, com disciplina e sob os ditames da “tradição”. Reconhecida benzedeira da cidade, a fama de seus poderes mágicos também atravessou os limites das irmandades de Ibirité e do Jatobá.
Enferma, no final dos anos oitenta do século passado, entregou seu cargo em Ibirité para a neta Tuca e no Jatobá para a atual rainha conga dona Leonor Galdino. Era uma transmissão provisória, já que continuou sendo oficialmente a rainha conga das duas irmandades até sua morte no ano de 1994, quando Tuca, em Ibirité, e Dona Leonor, no Jatobá, puderam de fato ser coroadas as rainhas congas das respectivas irmandades. Com a enfermidade de Dona Liquinha as relações entre as irmandades de Ibirité e Jatobá estremeceram, mesmo a rainha recebendo a visita de coroa da guarda de João Lopes todos os anos. Os elos foram fortalecidos novamente após a morte deste capitão no ano de 2004, ficando à frente da irmandade o capitão Matias.
Em Ibirité, com a doença de Dona Liquinha e seu afastamento da liderança da guarda (e depois com sua morte), bem como com a morte de seu esposo José Basil no início da década de 1980, os laços da guarda parecem ter afrouxado, pois é opinião comum entre os congadeiros que com a ausência da autoridade da antiga rainha, a disciplina da guarda enfraqueceu, bem como sua força mística. Cada vez mais a manifestação passou a se aproximar da Igreja Católica e dela sofrer influência na figura forte e presente do Padre José e de pessoas ligadas aos grupos litúrgicos da igreja, como o antigo presidente da irmandade, e hoje seu general, Eli de Freitas.
Atualmente os festejos da Irmandade acontecem no segundo, terceiro e quarto finais de semana do mês de setembro. O segundo final de semana é dedicado à visita de coroas – momento em que as guardas de Congo e Moçambique, em cortejo, visitam os reis em suas casas recolhendo-os para o levantamento do mastro de aviso, marcando assim o início das festividades em louvor à Nossa Senhora. No terceiro ocorre a grande festa, com o levantamento do mastro de Nossa Senhora do Rosário na frente da capela no sábado à noite e com a visita das guardas visitantes, a celebração da missa conga e o pagamento de promessas em torno da igrejinha no domingo. No domingo do quarto final de semana dá-se a entrega de coroa dos reis festeiros das festividades do ano seguinte, encerrando-se o ciclo de celebrações. Um almoço é servido a todos os partícipes da festividade no domingo da grande festa e no dia da entrega de coroas.
A Irmandade de Ibirité mantém relação com várias guardas da região que se visitam mutuamente como a guarda de Brumadinho, Sapé, Aranhas, Jatobá, João Pinheiro, Padre Eustáquio, entre outras.
Nos cargos de liderança da irmandade hoje estão: como presidente Roberto César Parreiras, filho da Tuca e dançante da guarda de Congo; rainha conga Gessy de Araújo, a Tuca, rei Congo Sr. Osmar Justino; capitão-mór Milton Gomes do Prado; capitão regente Neri Marinho Campos e como capitães das guardas: os moçambiqueiros Raimundo Breguete, Vando e Sr. Antônio (grande conhecedor da “tradição” do reinado) e os capitães do Congo Zé Marciano (Chico Rei), Luquinha e Vitório.
O dia em que a espada falou
Se as “encenações” do Reinado nem sempre se conformam com a estruturação ritual descrita no início do texto, pelo fato de cada grupo possuir suas especificidades locais, o que é certo, uma estrutura mínima é percebida. No entanto, apesar das celebrações do reinado em Ibirité responderem, quase que fidedignamente, a toda estrutura ritual reconstruída encontrei, com freqüência, uma transgressão ritual nada comum.
Como mencionado, o rito, que corresponde ordinariamente ao mito fundante, possui um ordenamento rígido e quase nunca burlado. O que quer dizer que, obrigatoriamente, uma série de traços: discursos, performances, hierarquias devem ser seguidos com rigor. No entanto, a própria estrutura ritualística, e podemos dizer toda estrutura, já contém em si arestas para fissuras, brechas para transgressões e atualizações. No caso particular, aqui tratado, foi o que ocorreu.
Em Ibirité, diferente das mais diversas irmandades, não era a guarda de Moçambique que se prestava à tarefa de buscar coroa – de buscar a rainha conga –, ou seja, simbolicamente não era ela que ia resgatar a imagem da virgem no mar. Numa releitura do mito, se burlava a lógica hierárquica do rito que diz que obrigatoriamente é tarefa do Moçambique (e isso possui uma série de outras implicações) buscar, em cortejo, a rainha conga e o rei Congo em suas casas como uma re-encenação do gesto primevo da manifestação. No entanto, isso se repetiu durante anos de maneira totalmente consciente. Sabia-se que o ato era uma transgressão, e que poderia acarretar vários constrangimentos, mas era mantido.
Isso ocorria porque, como também já mencionado, durante as festividades do Rosário algumas figuras possuem certos privilégios pela posição que ocupam. Neste caso, especificamente, é justamente a rainha conga, símbolo maior da virgem protetora, e que goza de grande prestígio e poder na hierarquia, quem burlava a ordem.
Consciente também do poder de que é investida, a rainha conga local, por um certo “capricho”, se assim podemos dizer, “ordenava” sempre que a guarda de Congo fosse, no lugar dos moçambiqueiros, buscá-la (resgatá-la!). Isso porque, na opinião da rainha, a guarda de Congo é mais rápida e, então, menos cansativa de se acompanhar pelos vários morros que formam a geografia local e que tem de ser percorridos em cortejo até a chegada na igreja. Alertada, várias vezes, das implicações que seu gesto podia suscitar ela nunca se mostrou preocupada, repetindo-o durante anos seguidos.
No ano de 2004, porém, um acontecimento fez com que tudo fosse repensado. Na semana que antecedia as festividades de Nossa Sra. do Rosário, uma espada de capitão de congado, herdada pela rainha conga de seu bisavô José Basil, que fôra general da irmandade, e que sempre ficou dependurada em uma das paredes da sala da casa, de “costas” para a entrada, caiu inexplicavelmente durante uma madrugada. Tuca acordou assustada com o barulho e logo que viu a espada caída no chão se apavorou. Enquanto seu esposo tentava tranqüilizá-la pedindo que voltasse a dormir a rainha não teve dúvida alguma, a espada falara alguma coisa a ela e ela não sabia o quê. Como poderia uma espada que estivera durante décadas dependurada em um mesmo local, com várias outros objetos dependurados a sua volta, sem nunca se mover, cair sem nenhum motivo aparente e em um momento tão especial, a semana que antecedia as festividades e que é cercada de tantos mistérios e preceitos rituais?
O acontecimento abalou profundamente a rainha que, procurando fatos que pudessem se ligar ao ocorrido, não esitou em rever sua postura e “ordenou” que a guarda de Moçambique, investida de sua força mágica, viesse buscá-la. Decidiu igualmente que a espada, em meio a um ritual, mudaria de lugar: sairia da parede onde encontrava-se anteriormente e seria dependurada do outro lado da mesma parede, só que de frente para a porta de entrada da casa, onde poderia cortar qualquer mal que pudesse ser feito contra ela e algum dos seus. O recado foi dado aos capitães do Moçambique no sábado à noite.
Estávamos na casa da Tuca ajudando nos preparativos do almoço do dia seguinte. Vários amigos meus haviam se deslocado de Belo Horizonte para Ibirité para ajudar na cozinha. A casa estava cheia porque todos nós dormíramos lá para acompanhar a alvorada. A alvorada, como já disse, é o forte momento em que os congadeiros visitam os reis na madrugada do domingo da grande festa. Alegres descascávamos, picávamos, cortávamos, colocávamos lenha na fogão, fritávamos frango e, tudo, regado à gostosa conversa e boa bebida.
Uma festa se fez na cozinha improvisada nos fundos da casa da Tuca naquela noite. Breu, terra, cheiro e som! Mas um assunto era central em meio as conversas animadas e exaltadas: a espada que caíra. Tuca não se conformava com o fato ocorrido e sua inquietação era passada a todos. Nem sei quantas vezes ela repetiu a história, preocupada, afirmando que na manhã seguinte tudo se resolveria com a mudança de lugar da espada. As tantas da noite fomos dormir ansiosos pelo dia seguinte. Todos, menos Tuca...
Na manhã de domingo, conforme exigido, a guarda de Moçambique cumpriu sua tarefa de buscá-la, em meio a um clima muito especial. Era incontestável a atmosfera que recobria aquele instante. De dentro da casa se ouviram as caixas do Moçambique ainda distante. Uma explosão se fez. O nervosismo se apossou das pessoas, chamávamos, uns aos outros, para sairmos para a rua assistir a chegada do Moçambique. Tuca permanecia, ansiosa, dentro de casa. Chegamos em bando no passeio, de frente à entrada da casa e vimos, lá no começo da rua, a guarda apontar. Lá vinha o Moçambique, devagar, bem devagar. O som fazia arrepios! Nunca tinha visto o Moçambique com tanta força. Mas de repente, a meio caminho da entrada a guarda parou. Seu Antônio, o velho capitão do Moçambique, apitou, levantou seu bastão e recitou uma embaixada. Embaixada são os versos que os capitães recitam uns para os outros, ou até mesmo para os santos e a Virgem Maria, fazendo uma saudação, agradecendo algum gesto, mandando alguma mensagem ou convocando o adversário para uma possível batalha. Sandro, que estava ao meu lado, logo percebeu o recado. Sr. Antônio dizia: “sai da frente que minha boiada vai passar”. Era um recado. Pra nós. O Moçambique havia chegado, e armado, para a guerra.
Inteiramos os outros do que se tratava e rapidamente nos retiramos da entrada. Seu Antônio queria a entrada livre. Fomos para a casa enquanto a guarda voltava a caminhar. Lá dentro todos estavam tensos, em especial, Tuca, Karina e Sandro, seus filhos. Quando a guarda parou diante de Tuca ela já estava em choro. As lágrimas desciam em seu rosto enquanto o Sr. Antônio lhe dizia que havia recebido o seu recado, mas que ele havia chegado aos seus ouvidos antes mesmo que ela o enviasse. O recado já havia sido dado a ele pelos antepassados, por Dona Liquinha, antiga rainha. Ele havia se encontrado pessoalmente com ela. O encontro: o velho capitão e a antiga rainha morta! Os acontecimentos se cruzavam!
Seu Antônio chamou a atenção de Tuca, claro! Falou da promessa que havia feito à Dona Liquinha e Zé Basil que até a sua “partida” acompanharia o Reinado de Ibirité e não o deixaria morrer. Eis seu compromisso, sua missão! Em seguida entrou com os capitães para dentro da casa. O restante da guarda permaneceu no alpendre, do lado de fora. Nós estávamos lá dentro.
Algo se apossou do corpo do velho capitão. E teve início o ritual. Enquanto ele entoava as embaixadas e as caixas soavam, uma emoção tomou conta de todos. Tuca chorava! Karina chorava! Sandro chorava! Eu chorava! Chorávamos todos. Copiosamente. Inexplicavelmente. Enquanto as palavras do capitão ecoavam pela casa, latas de alumínio vazias, dependuradas nas paredes da casa, caíam e uma cena emblemática, mágica, surgia. Com seu bastão em punho e com a ajuda de Vando, o jovem 1º capitão do Moçambique, segurando também seu bastão, levantaram vagarosamente a espada e a colocaram no lugar escolhido para ela, de frente a porta de entrada! Outras palavras de advertência foram ditas e as pessoas presentes foram cumprimentadas. Se serviu o café.
Feito o ritual e coroada a rainha, o Moçambique partiu pelas ruas. Numa rememoração do mito, a imagem havia sido novamente resgatada, encantada, e agora eles a conduziam em procissão. Os negros seguiram, novamente, em canto e dança, fazendo ver sua realeza pelas ruas da cidade!
O Reinado e sua magia
Soa bastante estranho a história que acabei de contar!
A capacidade de atribuir traços animados a seres inanimados nos é mais aceitável em estórias encantadas do que nos acontecimentos diários. Há uma diferença marcante entre a pessoa que concebe a possibilidade de interlocução com uma espada e outra, que vê nisso, um ato absurdo! Ao que tudo indica, estamos falando aqui, de duas formas diferentes de ler os acontecimentos da vida, de duas formas diferentes de percepção do mundo. E é para destacar essa diferente forma de olhar que esta pequena historieta foi posta em cena.
Parte considerável dos estudos sobre as congadas, o congado ou Reinado – ou sobre a tradição da coroação de Reis Negros no Brasil – enfatizou as relações de poder entre o colonizador e o colonizado e, assim, a inversão simbólica do poder que operavam. Com um olhar, na maioria das vezes, folclorizante, essas manifestações foram concebidas enquanto divertimento, distração, devoção popular ou, quando mais longe, uma forma bem sucedida de organização sócio-politica. Essas últimas teses, interessadas em destacar a força e resistência dos negros, frente ao poderio e opressão do senhorio branco, remetem sempre ao rico universo cultural negro, sua capacidade de persistir à cultura hegemônica apropriando-se dela, e de sua eficiente organização política, capaz de subverter uma situação de total opressão.
No entanto, o que aqui gostaria de destacar, e que poucos trabalhos provavelmente o fizeram, é a natureza eminentemente sagrada desta manifestação. Não apenas como um auto popular de traços religiosos ou de uma manifestação de “origem” religiosa, mas destacar a relação com o sobrenatural e o pensamento mágico, enquanto suas dimensões estruturantes. Não quero assim negar a complexidade e riqueza cultural negra e sua influência no que muitos hoje chamam de “cultura brasileira”, tão pouco questionar a capacidade organizacional dos negros durante a escravatura e as subversões que operavam e ainda operam, mas sim, pelo menos no caso do congado, mostrar que é muito pouco proveitoso negligenciar a dimensão mágica que impregna todos estes traços. Ao se perguntar a um congadeiro porque mantém essa tradição com certeza irá responder: “Em louvor a Nossa Senhora do Rosário! Para manter a tradição de nosso antepassados!” É deles que vem a dimensão do sagrado. É em torno desse sagrado que se reúnem!
Para defender essa idéia me reportarei a todo o estudo historiográfico destacado na primeira parte deste trabalho, ao “mito de origem” do Reinado, qual seja, o resgate da imagem da Virgem do Rosário do mar, aos resíduos dos dialetos africanos bantos que ainda procriam nos cantos e contos negros e a situações/casos (como o da espada) que presenciei ou que me foram relatados nos muitos festejos em que participei, ou na presença diária com os congadeiros. Serão bastante caros para os meus argumentos os clássicos trabalhos de Evans-Pritchard sobre a bruxaria entre os Azande e os de Lévy-Bruhl sobre pensamento primitivo e suas noções de participação e afetividade.
Voltemos às majestades! Iniciei o texto dizendo que é impossível falar em congado ou do congado sem falar ou pensar em reis e rainhas, ou seja, em majestades. Em seguida procurei destacar, seguindo os seminais argumentos frazerianos, que também é impossível pensar em reis sem nos remetermos às suas relações com o divino e o sobre-natural. Ou seja, ao falar de reis estamos falando de um poder temporal e de um extra-temporal. Se no caso dos congados a dimensão temporal da coroação de reis remetia, ou ainda remete, a uma inversão do poder estabelecido (há aqui uma postura política), sua dimensão extra-temporal nada tem de “simbólica” (no sentido de representação, de estar ocupando o lugar de alguma outra coisa se não ela mesma), sendo uma realidade incontestável para quem dela participa, assim ela é. As majestades, e as insígnias que portam (coroas, bastões etc.) são dotadas de um poder especial capaz de fazer aquilo que homens comuns não podem (curar, adoecer, chover) sendo em situações específicas a personificação de divindades ou figuras divinas – a rainha conga, durante os festejos ou enquanto coroada, é a própria Virgem resgatada; o rei Congo, os ancestrais mortos presentificados!
Se voltarmos a pensar no encontro cultural entre os negros do Congo e os portugueses, não apenas enquanto um encontro de diferentes civilizações ou impérios, mas de diferentes culturas, de diferentes cosmologias, perceberemos que a relação dos africanos com a hierarquia real, e depois com essa mesma hierarquia transposta para as encenações de reis negros, não era, e não é, da mesma ordem de percepção da européia. Nela estão envolvidos outros elementos da ordem do sobre-natural, intimamente ligados às antigas crenças Congolesas. Se aceitamos a idéia de formação de um catolicismo africano, por maiores que sejam as questões que ela possa levantar, não podemos ler estes encontros pelo enviezamento de um olhar somente (só lamento) cristão. O acontecimento histórico proporcionou o surgimento do outro, diferente!
Gostaria de me reportar a pelo menos duas palavras de origem banto, ainda muito freqüentes nas celebrações do congado e nos dizeres de seus integrantes, e que encontramos nos trabalhos de Marina de Mello e Souza, já referido, e de Aires da Mata Machado: O Negro e o Garimpo em Minas Gerais.
A primeira delas é Zambi, hoje freqüentemente cantada e falada nos congados mineiros se referindo a Deus, ou um deus supremo. Mello e Souza nos diz, como já relatado anteriormente, que “estudos do começo do século XX em regiões vizinhas ao antigo reino do Congo, pertencentes a uma mesma área cultural [...] apontam Nzambi como designativo de deus celeste, ser supremo”. Se referindo ao trabalho de Randles conta que “Nzambi Mpungu significa ‘Deus’ em kikongo moderno, mas que seu sentido na época dos primeiros contatos com os portugueses parece ter sido ‘rei divino’” (2006: 54). Não é de se estranhar que D. João II tenha se tornado, na ocasião do encontro entre os dois povos, Nzambi Mpungu.
Aires da Mata Machado, estudando um povoado negro próximo à cidade de Diamantina, São João da Chapada, ainda em 1928, identifica entre o vocabulário tradicional dos negros de origem banto o termo Angana-Nzambi traduzindo-o como Deus. Mas aponta outras ramificações do mesmo termo presentes em cantigas da região: Ganazambi, Nganazambi, Anzambi etc. A partir daí cita o estudo de outros autores como Jacques Raimundo e Artur Ramos se referindo ao mesmo Nzambi ou Zambi como Deus (1985: 121-126). É importante destacar que Mata Machado, em muitos pontos, relaciona a crença em Zambi ou Nzambi à situações de feitiçaria.
Outra palavra ainda recorrente é Nganga. Hoje, presente nos reinados, é utilizada em referência aos capitães e, como pude observar, podendo estar equivocado, somente aos capitães das guardas de Moçambique. Marina de Mello e Souza nos diz que na cosmogonia baCongo uma das categorias dos líderes religiosos que detinham os poderes mágicos era dos nganga , “que prestavam serviços privados e trabalhavam com a ajuda de minkisi, objetos mágicos indispensáveis à execução dos ritos religiosos, originadores da noção de fetiche” (2006: 65). É importante relatar que a autora compara a foto de um nkisi Congo à foto do bastão de Moçambique do já referido capitão João Lopes, da Irmandade do Rosário do Jatobá, numa composição bela e perturbadora, estabelecendo um paralelo entre os dois objetos rituais:
“bastões de mando, comuns na África Centro-Ocidental, eram minkisi que incorporavam qualidades da entidade divina representada, e com a qual eram meios de contato. Esses bastões estão presentes em festas da atualidade, provavelmente ocorrendo o mesmo nas mais antigas, uma vez que para existirem agora, o saber envolvendo sua feitura, significação e tratamento ritual, diretamente ligado as culturas africanas, foi transmitido por geração anteriores”. Continua citando Leda Martins, para quem “esses bastões, importantes na condução dos rituais, signos de poder e comando, usados apenas pelos capitães de Moçambique e pelo rei Congo, ‘contém em seu interior ervas, contas e águas do mar, sendo ainda, consagrados no altar, durante uma cerimônia religiosa’. Signos de força e sabedoria, ‘representam o poder de seu portador, que deve guardá-lo e honrá-lo com propriedade’” (2006: 221).
No processo de encontro entre os portugueses e os habitantes do Congo foram os missionários associados aos ngangas. Mata Machado também identifica o uso da palavra nganga entre os saojoanenses e assim os designa: “Nganga ou Uganga – Padre. No país de origem significava feiticeiro, curandeiro, sacerdote” (1985: 132).
Acompanhando os rastros lingüísticos bantos, nas celebrações do congado hoje, nos é licito não só reafirmar a relação entre os reis e as divindades e sua ocorrência no reinado, como deduzir que se os nomes dos cargos da estrutura hierárquica ritual do congado, assim como ocorreu no antigo império do Congo, se espelham na estrutura real européia, possuem, sim, um fundamento sagrado ligado aos cargos e funções mágico-religiosas da tradicional cultura Congolesa. Os congadeiros ainda cantam para Zambi e seguem, não apenas capitães, mas grandes ngangas, feiticeiros, mestres rituais, curandeiros capazes de proezas inimagináveis!
A relação entre estes traços e a prática de feitiçaria ou magia é mais enfatizada em relação a indivíduos particulares e grupos específicos do congado. Como descrito anteriormente e explicitado agora, estes poderes são na maioria das vezes associados aos reis, aos capitães e as “guardas” de Candombe e Moçambique. Mesmo sendo um tabu as falas a este respeito, tabu ligado, na maioria das vezes, ao preconceito associado a estas práticas, são riquíssimos os relatos de acontecimentos mágicos, situações de enfeitiçamento e a menção a elementos poderosos que cada um ou cada grupo porta.
Me permitirei fazer uma releitura do mito de origem enfatizando o gesto fundante de resgate da Virgem Maria, a Santa do brancos, como ato ou gesto de encantamento dos negros. Uma leitura que permite distinguir a inversão de poder dos negros, perante os brancos, a partir de seu poder mágico. Devo ressaltar que a versão que agora levanto nunca me foi colocada por nenhum membro do congado, mas não me sinto constrangido em defendê-la. Existem elementos suficientes para me arriscar a fazê-la e que essa leitura nos pode ser muito cara para pensarmos a manifestação.
Nos conta o mito que surgiu no mar a imagem da Senhora do Rosário, uma das personificações de Maria, também rainha, mãe de Jesus. Depois da tentativa, sem sucesso, do resgate da imagem pelos homens brancos, receberam os negros a permissão de também se arriscarem. Um primeiro grupo, com instrumentos, gestos e cânticos específicos também não obteve êxito. Esse primeiro grupo é o associado às guardas de Congo. Um segundo grupo, então, identificado como Candombe, e hoje associado às guardas de Moçambique, portando outros instrumentos musicais (gungas e patangomes), os tambores sagrados, indumentária característica (mais simples e rústica) com gestos, danças e cânticos diferenciados conseguiram a façanha. Por essa força é dado aos Moçambiques o dever de conduzir as coroas durante os festejos do Reinado. Mas por que a virgem escolhera um grupo especifico de negros diferenciando os “iguais”?
Pensando sobre essa questão o que primeiramente me veio à mente foram justamente as diferenças explicitadas pelos dois grupos. A maior delas é o fato de ser sempre o Moçambique a guarda associada às magias, aos feitiços e aos encantamentos. Os elementos distintivos dos moçambiqueiros remetem justamente a uma imagem mais negra, leia-se africana, e neste sentido tradicional. As indumentárias mais rústicas e simples (em oposição aos coloridos dos Congos), as gungas, patangomes e os tambores instrumentos mais primitivos (em oposição as violas, pandeiros e sanfonas dos Congos) associam-se claramente ao poder mágico que este grupo, especificamente, detêm. Não que os outros grupos não utilizem de poderes mágicos, pois lembrem-se que a imagem seguiu o primeiro grupo de negros até um certo ponto e retornou, mas não foram eles suficientemente eficazes, em sua magia, para cumprirem a missão.
O diferencial entre os negros moçambiqueiros e os negros do Congo e, principalmente, entre os homens brancos é, significativamente, seu poder mágico. A associação entre os nganga (sacerdotes tradicionais detentores de poderes mágicos) e os capitães do Moçambique e entre os bastões dos capitães e os nkinsi (objetos mágicos com poderes próprios) já deve ter fornecido maior sentido.
Minha hipótese é a de que a imagem da Virgem do Rosário foi encantada pelos negros candombeiros, ou mocambiqueiros, sendo seu encantamento produzido a partir dos falas e embaixadas, cânticos, danças e sons emitidos pelos instrumentos sagrados. Nos colocamos, aqui, em um jogo de agências: os conhecimentos tradicionais, a imagem que se comunica com os negros e a força mágica! A imagem de Maria, imagem essa católica, tomemos aqui a imagem do catolicismo como um todo, foi reapropriada e ressemantizada pela matriz negra, pelo poder mágico do negro Congolês. A força mágica, a força do encantamento, encontra-se explicitada na narrativa fundante da manifestação e pode, pois, ser apreendida como seu elemento estruturante.
Mas se a cosmovisão banto encontrou no catolicismo campo fecundo para reorientações é porque o próprio catolicismo as permitiu. Seríamos ingênuos se não procurássemos nele elementos para procriação deste universo mágico. Já foi demonstrado por muitos estudos que o catolicismo popular, em especial o português, sempre foi tido como demasiadamente sincrético e, neste sentido, “impuro”. Num dos relatos do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire em sua viagem ao Brasil ele diz que “sabe-se que Portugal é um dos países da Europa em que a ignorância e a supertição mais alteram a pureza do cristianismo” (2000: 85). Sobre os brasileiros também nos diz o viajante:
Já tive diversos ensejos de falar, no meu diário, da confiança que os brasileiros depositam nos amuletos e remédios de simpatia. Um dos meios de cura que empregam, também muito freqüentemente, é a benzedura de seus males. O charlatão terapeuta deve, ao mesmo tempo, repetir uma fórmula devocional. Uma multidão de indivíduos encarrega-se assim de benzer as pessoas e isto na maior boa-fé. Não posso conceber que um homem que se intitula cirurgião e por conseguinte deve ter sido diplomado, sancione com o exemplo as práticas supersticiosas (1974: 29).
As associações do catolicismo popular em Portugal com práticas mágicas é latente nas relações com os santos, nas práticas de benzeções e simpatias, em suas associações com as antigas festas de colheita etc. Célia Maria Borges em Escravos e Libertos nas Irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX, nos diz que
a prática da feitiçaria era também comum na cultura do colono – português e brasileiro –, como nos mostraram trabalhos de Gilberto Freyre e de Laura de Mello e Souza. O próprio catolicismo era eivado de práticas que se aproximavam da magia. Impregnado de crenças e práticas mágicas, o catolicismo herdara parte das antigas tradições européias estabelecendo com os santos uma política do toma lá da cá: procissões para fazer chover, rezas para curar doenças e afastar mau-olhados. Dessa forma, elementos próximos das matrizes distintas eram ressignificados, permanecendo os sentidos próximos às culturas de origem. (Borges, 2005: 129).
Também percebemos a presença da magia no catolicismo, a aceitação de sua existência e de sua eficácia, pela via da negação. Ao combater a magia, o cristianismo acabou por reafirmá-la. Assim como se deu na inquisição com a perseguição as bruxas, Taussig mostra, em seu estudo entre os povos da Colômbia: Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem, que na América os próprios missionários cristãos foram responsáveis pela introdução da magia. Ele diz que
Com o cristianismo, ao que me parece, os missionários também introduziram a magia, como ela é denominada atualmente no Putumayo, em referência ao poder que deriva de um pacto com o demônio. Os missionários acreditavam firmemente na eficácia da feitiçaria e supunham que os índios eram especialmente dados a praticá-la, devido ao fato de terem sido seduzidos pelo demônio.(Taussig, 1993:146).
Seja com elementos mágico-religiosos no interior de suas práticas, seja perseguindo aqueles que se acreditava serem possuidores desses poderes, num duplo movimento, o catolicismo sempre esteve aberto à existência mágica reafirmando a sua eficácia. O que, sem dúvida, foi extremamente propício para as ressignificações oriundas da troca entre os nativos africanos e os europeus.
Mas voltemos ao caso da espada e retomemos agora o pensamento.
Por que a rainha interpretaria a queda da espada enquanto um fenômeno místico? Se recuperarmos os elementos que compõe à cena teremos um quadro propício a leituras desta natureza.
O objeto em questão não é um objeto comum, mas um instrumento de poder, interno às celebrações do congado, uma espada de comando como as que portam os capitães. O fato tendo ocorrido durante as festividades da irmandade, tempo cercado de mistérios e, como já dito, envolto por preceitos e obrigações rituais. Contudo, isso nunca havia ocorrido antes, a espada encontrava-se dependurada na parede há anos e nunca, nem se quer, havia se mexido. Algo ligou o acontecimento à situação na qual se desenrolou. Ao que me parece, o que operou estas associações foi justamente a maneira como a rainha conga leu este acontecimento, maneira pela qual consegue perceber todo o mundo ao seu redor. Isso porque não são apenas os fatos relacionados à prática do congado os percebidos por essa ótica, mas todo e qualquer infortúnio que não pode ser apreendido por cadeias causais evidentes. Outros exemplos, mas adiante, nos mostrarão isto.
Entendo, de alguma forma, que assim como apontou Evans-Pritchard no caso dos Azande, esta forma de ver os acontecimentos da vida reflete o “idioma de seu pensamento” (2005: 50). É certo, a espada caiu como cairia o quadro ou o relógio dependurados na parede, afinal, todos sabemos, existe uma força natural que tudo atrai para a terra. Mas afinal, por que então não caiu o quadro, ou o relógio dependurados na parede e, por que estando a espada ali há anos ela não caíra antes, mas somente durante as celebrações festivas anuais? Transporto para cá as observações feitas pelo antropólogo no caso dos nativos africanos:
“Em nosso modo de ver, a única relação entre esses dois fatos independentemente causados é sua coincidência espaço-temporal. Não somos capazes de explicar por que duas cadeias causais interceptaram-se em determinado momento e determinado ponto do espaço, já que elas não são interdependentes” (2005: 53).
Assim como no caso Azande a bruxaria explica a coincidência de dois acontecimentos, em nosso caso um acontecimento de ordem mística: a transgressão ritual, um feitiço lançado sobre os moradores da casa, uma mensagem dos antepassados ou a força mágica da própria espada.
Estamos envoltos em um universo plenamente mágico, onde todas as observações encontram-se subordinadas às crenças e/ou à fé que os membros do reinado compartilham, servindo elas para explicar e justificar acontecimentos. Não falo apenas da fé em Nossa Senhora do Rosário e nos santos padroeiros, nem somente na crença nos antepassados que os congadeiros perpetuam, mas numa percepção do mundo diversa da bem definida e compartimentada visão moderna da vida! Mesmo sendo as observações do congado e os relatos de casos aqui mencionados nossos contemporâneos, viventes e partícipes da mesma época, do mesmo período histórico, seus membros, moradores de centros urbanos, de grandes cidades, seu universo é eminentemente místico!
Ao lidar com essa realidade podemos invocar, sem receio, várias das características levantadas e das teorias elaboradas nos primeiros trabalhos antropológicos sobre religião e magia nos povos primitivos como: as leis da contigüidade e da similaridade, a indistinção entre natural e sobrenatural (ou natureza e sobre-natureza), a participação dos seres e das coisas, sendo estas também seres, a apreensão afetiva dos acontecimentos, a reciprocidade e a idéia de mana, como força latente e flutuante das relações.
Nos é evidentemente impossível pensar através deste idioma. Entraríamos na interminável luta que travou Lévy-Brhul antes de sua morte, e que registrou em seus Carnets, se tentássemos transportar essa lógica para a nossa, cartesiana, dual. E, desde já, assumo a dificuldade em traduzir/trair, este universo, e este obstáculo, para o texto já que a linguagem, e por isso também a escrita, são expressão de nossas operações mentais, da forma como opera o nosso pensamento.
“O pensamento primitivo, porém, tem um caráter completamente diferente. Ele se orienta na direção do sobrenatural. Diz Lévy-Bruhl: ‘A atitude da mente do homem primitivo é bem diversa. A natureza do meio em que ele vive se lhe apresenta de modo muito diferente. Todos os objetos e seres pertencem a uma rede de participações e exclusões místicas. É o que constitui sua textura e sua ordem. Imediatamente se impõem a atenção do homem primitivo e a dominam. Se um fenômeno parece a ele interessante e se ele não se contenta, por assim dizer, em apenas percebê-lo, passivamente e sem reação, pensará imediatamente, como por ação de um reflexo mental, num poder oculto e invisível do qual o fenômeno é apenas uma manifestação’”. Vale dizer que para Lévi-Bruhl “não falta inteligência aos primitivos, mas sim que suas crenças são inteligíveis para nós”. Dito de outro modo: para Lévi-Bruhl os primitivos “são razoáveis, mas raciocinam em categorias diferentes das nossas. São lógicos, mas os princípios de sua lógica não são os nossos e nem os da lógica aristotélica”. Em uma palavra: “aquilo que para nossos olhos parece ser impossível ou absurdo é, para a mentalidade primitiva, freqüentemente aceito sem dificuldade”(Evans-Pritchard, 1978: 114-116).
Será que por isso a linguagem poética é mais facilmente contaminada por estes estranhos impulsos?
“Como os primeiros motivos que induziram o homem a falar foram as paixões, suas primeiras expressões foram tropos. A linguagem figurada foi a primeira a nascer, o sentido próprio foi encontrado por último. Não chamamos as coisas pelo seu verdadeiro nome senão quando as vimos sob sua verdadeira forma. A princípio não falamos senão em forma poética. Só chegamos a raciocinar muito tempo depois” (Rousseau apud. Lévi-Strauss, 1975: 106).
Utilizo as idéias de participação e afetividade elaboradas por Lévy-Brhul, já repensadas em seus últimos escritos, como apoio a leitura que faço dessa “realidade”. Se é possível aos congadeiros pensar logicamente, da forma que concebemos, parece ser certo que, antes disso, eles sentem os acontecimentos. Como escreveu o filósofo, “a participação não é produto, mas ponto de partida” (Lévy-Brhul, 2001: 6). Opera no mundo do reinado uma união entre o natural e o sobrenatural. Em suas mentes atua um princípio de indistinção, de onde surge o princípio de participação e, nesse sentido, as experiências são muito mais afetivas do que intelectivas.
[Aqui devo abrir um parênteses. Num texto de 1923 intitulado “Mentalidade Primitiva e Participação” Marcel Mauss comenta os escritos de Lévy-Bruhl ponderando alguns pontos. Me é licito citar ao menos um destes pontos. Mauss questiona a Lévy-Bruhl se não é demasiado arriscado atribuir apenas aos ditos povos primitivos as características que ele associa à mentalidade primitiva.
“Mas Lévy-Bruhl na minha opinião não foi suficientemente historiador. Em primeiro lugar, não levou esta história até as sociedades modernas. Não efetuou, portanto, a prova de uma diferença entre o espírito humano primitivo e o nosso. Com efeito, existem semelhanças muito mais profundas do que o dá a entender Lévy-Bruhl. Sem dúvida, ele faz reservas na questão das sobrevivências, mas não é certo que partes consideráveis de nossa mentalidade não sejam ainda idênticas às de uma grande número de sociedades ditas primitivas. Em todo caso, grupos numerosos de nossas populações, partes importantes de nossa espiritualidade encontram-se ainda nesse estado, hoje. As práticas divinatórias não se acham mais em uso no Ocidente, a não ser entre pessoas superticiosas, ou acidentalmente. É verdade, mas as noções de veia, de sorte, de acaso, são as mesmas hoje como nos tempos antigos ou em espiritualidades mais rudes. Da mesma forma, será que, em moral e em teologia, a noção de pecado e de expiação funcionam entre nós de maneira tão diferente do que nas sociedades polinesianas onde nosso pobre amigo Robert Hertz as estudou?” (1978: 377-378).
Aqui tendemos a concordar com o sociólo/antropólogo. Como já mencionado, os membros do reinado são participes das sociedades urbanas modernas. Mas também não podemos encarar suas crenças enquanto sobrevivências ou superstições. Ao estabelecermos um paralelo entre o que Lévy-Bruhl chama de mentalidade primitiva e a mentalidade que aqui designamos como mentalidade mágica, assumimos a defesa de que os traços que identificam tais mentalidade se encontram, hoje, fortes na concepção de vida de muitos grupos e que eles se distinguem, sim, do modelo de mentalidade ocidental, sobretudo moderno. Eles coexistem. Talvez a modernidade não tenha sido tão feliz em seu projeto colonizador e opressor. A magia esquiva, escorrega, escapa, contagia. Contagia-nos!]
Por isso eles são capazes de perceber relações que nós não percebemos.
“‘A realidade em que os primitivos vivem é em si mesma mística. Nenhum ser, nenhum objeto, nenhum fenômeno natural em suas representações coletivas é aquilo que a nós parece ser. Quase tudo o que vemos lhe escapa, ou lhes é indiferente. Por outro lado eles vêem muitas coisas das quais nem sequer suspeitamos’” (Lévy-Bruhl apud. Evans-Pritchard, 1978: 119).
Se isolamos certos acontecimentos em compartimentos fechados por não ser possível sua explicação pelos termos aceitáveis (os milagres, por exemplo), eles os amarram em uma teia de relações que tudo abrange. Todo o mundo é repleto de relações. Talvez pudéssemos assim defini-lo: uma rede de participação! Em certo momento de sua obra, Lévy-Brhul utiliza-se de um interessante exemplo. Analisando a linguagem tradicional, ele percebe que não existe, na língua dos ditos povos primitivos, a existência autônoma das coisas. Na mente do “primitivo” não existe, como para nós, o pé ou o pescoço isoladamente, mas o meu pescoço, o meu pé, formando, assim, um conjunto orgânico. Se nós fomos capazes de elaborar o conceito de organismo eles o tem na prática.
Como não, neste ponto, recuperar a idéia de mana?
“O mana não é simplesmente uma força, um ser, é também uma ação, uma qualidade e um estado. Em outros termos, a palavra é ao mesmo tempo um substantivo, um adjetivo, um verbo. [...] a palavra compreende um quantidade de idéias que designaríamos pelas palavras: poder de feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, coisa mágica, ser mágico, ter poder mágico, estar encantado, agir magicamente; ela nos apresenta, reunidas num único vocábulo, uma série de noções cujo parentesco entrevimos, mas que alhures nos eram dadas isoladamente. Ela realiza aquela confusão do agente, do rito e das coisas que nos pareceu ser fundamental em magia. [...] O mana é propriamente o que produz o valor das coisas e das pessoas, valor mágico, valor religioso e mesmo valor social” (Mauss, 2003: 142-143).
O mana não é aquilo que é, ao mesmo tempo, uma força, uma substância, uma ação e uma qualidade estando aí seu poder de contágio, sua capacidade de ser transmitido? Algo que circula entre os vivos, os não vivos e os sem vida. Mas existirá então algo sem vida? É por esse poder que as espadas podem falar, é por essa qualidade que rompe a barreira entre os vivos e os mortos e o culto à ancestralidade, tão fortemente marcado dentro do Reinado, se imortaliza.
Se recuperarmos a análise maussiana do mana, e por conseguinte, da magia, veremos que ele nos diz que é ele um dado a priori, uma categoria inconsciente do pensamento que torna possível as idéias mágicas.
“Enquanto toda ciência, mesmo a mais tradicional, é ainda concebida como positiva e experimental, a crença na magia é sempre a priori. A fé na magia precede necessariamente a experiência: só se vai procurar o mágico porque se acredita nele; só se executa uma receita porque se tem confiança nela”. (Mauss, 2003: 127).
Seria o que preenche o vazio da forma, esta dada pela natureza, sendo um dado (possui existência própria) e algo construído coletivamente. “A magia é um massa viva, informe, inorgânica, cujas partes componentes não têm nem lugar nem funções fixos” (Mauss, 2003: 123). O que existe a priori, pois, é a afetividade. Neste jogo complexo o que mais nos desestabiliza é a abertura para a infinidade de possibilidades. Do visível facilmente se passa para o invisível, e o leque de “interpretações” para determinado fato se amplia. As respostas mágicas são muito mais abrangentes do que as respostas ditas Racionais.
Vejam que daqui podemos seguir por frutíferos caminhos. Tomemos três ao menos. O primeiro, uma idéia de coletivo. O princípio da participação nos leva para o fortalecimento da idéia de grupo. As irmandades, ou as guardas de congado, se comportam como um grupo familiar, e o sentimento de pertencimento marca fortemente seus membros. O indivíduo fora do grupo é como um corpo mutilado. Elementos do universo mágico reforçam esses laços. Os processos de iniciação, por exemplo, além de fazerem emergir o mundo dos segredos tradicionais, no caso do congado os chamados fundamentos, remetem a momentos rituais, transitórios, onde os indivíduos reforçam os laços de socialidade e gradativamente inserem-se no complexo universo cultural. E este pertencimento acaba se estendendo, como já mencionado, para o universo do além, onde nem mesmo os mortos se apartam do coletivo. Reforçamos, novamente, o culto à ancestralidade presente nestas práticas.
Um outro caminho vai ao encontro às situações. A teia de participações e seus fluxos desabrocham o universo de possibilidades, e por que não, de indecidibilidades. O que quero dizer? Que este universo mágico é avesso às certezas e aberto às situações, às contingências. “Tudo é incerto, nada é inteiro”, já dizia Fernando Pessoa. Tudo pode acontecer e não há nada que aconteça que não possa mudar totalmente o rumo das coisas. Nesse sentido, os momentos, fugidios, adquirem grande importância. É neles que, efetivamente, se desenrolam os acontecimentos. No tempo mínimo, num tempo infinito, em um não tempo. A magia é sempre relativa e são justamente as situações que significam cada caso. A espada que caiu após ter se mantido inerte por longo tempo...
Num outro sentido este caráter contagioso da magia nos oferece elementos interessantes para pensarmos a natureza sincrética dos congados. O encontro de matrizes culturais, como já falamos, se deu por reorientações mágicas, tanto da cultura Congolesa, quanto do catolicismo português, originando esse outro sincrético. Sincrético esse que, como o mana, permanece em movimento. Arrisco aqui a dizer que a natureza sincrética pode ser, de alguma forma, comparada a natureza mágica! Uma força dinâmica e ao mesmo tempo conflituosa, característica inerente da magia. Ressalto que o movimento sincrético dos congados permanece, como havia de ser. Se muitos o congelaram no encontro entre o catolicismo e a cultura africana, devemos ressaltar, como já mencionei rapidamente, que ainda hoje várias outras trocas se dão. As relações entre os membros do congado e terreiros de umbanda e candomblé se fazem cada vez mais presentes abrindo, com isso, outras tensões.
Entremos em outros casos para demonstrar que esta maneira de apreensão do mundo se dá tanto em relação aos acontecimentos relativos ao universo religioso e/ou ritual quanto às situações ordinárias dos membros do congado.
Certa vez, em uma conversa corriqueira, um dos membros do reinado me revelou sua preocupação com sua situação de desempregado. Ele, com grande experiência na atividade que sempre se dedicou, com boas referências estava, há meses, não me lembro bem se há mais de ano, sem conseguir um trabalho formal. Fazia um bom tempo que conseguia seus trocados fazendo algum bico. Ciente da situação econômica e social do país, e mesmo sabendo que este era um problema mais geral, do que apenas um caso particular, não se conformava em continuar desempregado já que também apresentava todas as condições necessárias exigidas para garantir seu lugar no mercado de trabalho. Para ele, o seu lugar ao sol deveria estar garantido, mas alguma coisa estranha, uma força a mais, o mantia sob as nuvens. Não sabendo identificar o que estava provocando indesejável situação havia decidido procurar uma ajuda espiritual. Precisava arrumar alguns trocados emprestados para fazer um “trabalho mágico” e então desfazer o mal, espiritual, que o mantia naquela condição. É certo, ele conseguiu o dinheiro, procurou, vejam bem, uma mãe-de-santo, e passou por um processo de “descarrego”. Não preciso dizer que algum tempo depois ele conseguiu o emprego e que, claro, o mesmo foi atribuído às forças mágicas a que recorreu.
Em um outro caso, um outro membro do reinado, de outra irmandade, adoeceu inexplicavelmente. Enfermo, se prostrou moribundo tendo que ser internado às pressas. Passou de um, para outro hospital, e mesmo depois de vários exames os médicos não conseguiram diagnosticar a causa da doença, com seu quadro agravando-se a cada dia. A família, então, convenceu o médico que liberasse o paciente um dia para que pudesse ser levado à casa de uma capitã de reinado, antiga amiga, integrante de uma tradicional família congadeira, para ser benzido por ela. Tendo recebido a autorização médica, a família levou o rapaz para a esperada benzeção. Atônitos, os familiares presenciaram a reza que se desenrolou com aspectos impressionantes. O paciente num estado de crise dos sintomas da doença, a capitã tomada por êxtase acentuado, e as velas utilizadas durante as orações queimando numa velocidade jamais vista! Depois de um forte e conturbado processo, a causa da enfermidade foi identificada e atribuída a uma magia lançada por um integrante de uma outra guarda de congado. Com a magia desfeita o rapaz retornou ao hospital, já com sinais de melhora. Inexplicavelmente, no dia que se seguiu a benzeção, seu quadro de saúde melhorou e obteve, ele, alta médica. A causa da doença nunca foi diagnosticada clinicamente.
Nestes dois relatos percebemos que o universo sagrado invade o mundo profano e que, mesmo fora do universo ritual, nas situações ordinárias, mas de crise, o pensamento mágico age. Sendo também notável o seu caráter pragmático, ou seja, sua característica de sempre produz algum efeito. Sua eficácia é incontestável. Acredito que não caiba aqui a explicação levistraussiana sobre a eficácia simbólica. Seus belos textos, A eficácia Simbólica e O Feiticeiro e sua Magia, e a instigante comparação que propõe entre o mago e o psicanalista, e assim entre o resultado mágico e o resultado da psicanálise, são ótimos pontos para nos fazer pensar. No entanto, me distancio um pouco das conclusões do antropólogo ao que, encontrando ele, na dimensão psicológica, a causação necessária para a compreensão da eficácia mágica, faz repetir a estrutura mesma de nosso pensamento e negligencia a dimensão acentuada pela crença nativa. Qual seja, a força mágica, ela mesma, responsável pela eficácia, tomando eles a magia enquanto uma entidade independente e o coletivo a agência capaz de manipulá-la.
“A antropologia em sua ancoragem cartesiano-hegeliana toma a si a tarefa de transformar as representações nativas (idéias obscuras e confusas) em conhecimento (idéias claras e distintas), exorcizando de seu horizonte compreensivo e de seu telos explicativo ‘os valores (humanos, muito humanos)’, como bem lembra Roger Bastide, parafraseando Nietzsche, ‘para substituí-los por uma lei interna de organziação (formal)’. Assim, por esse gesto (característico do estruturalismo lévistraussiano), o equívoco, os abismos, as vertigens do símbolo, as tentações dos sentimentos coletivos (tão bem evidenciado nas participações lévybruhianas) desaparecem. Mecanismo de defesa contra o irracional, diz Bastide, ‘mais exatamente contra a irrupção possível do sagrado’” (Barros; Martins; Pérez, 2007: 6).
Vejamos outros dois casos onde acentuaremos a independência da força mágica em relação ao individuo ou ao grupo e ao mesmo tempo o saber tradicional coletivo enquanto conhecimento necessário para utilizá-la em seu proveito. A cultura enquanto produtora de magia.
Em uma festa de congado, após a refeição dos convidados, a Rainha Conga, “dona da festa”, chamou a atenção das pessoas responsáveis em angariar ajudantes para a tarefa de servir os alimentos por causa de uma pessoa específica que ela tinha visto executando a função. Sua preocupação foi exposta quando ela argumentou que aquele homem era integrante de uma guarda rival. Sua intenção, fôra, desde o início, a melhor possível. Contudo, ressaltou a rainha, que a tarefa de servir os alimentos é uma tarefa muito delicada, sendo os alimentos, o seu processo de feitura e o ambiente onde é produzido uma esfera especial da festa (poderíamos nos prolongar muito a esse respeito) e, mesmo tendo ele a melhor das intenções, toda a história e o universo relacionado a ele poderia, de alguma forma, transmitir energias negativas ao alimento, provocando algum mal no momento da sua ingestão. O que a rainha acentuara fôra justamente a força mágica existente independente da vontade daquele homem. Assim como nos famosos casos de “mau olhado”, “mau agouro” ou “olho gordo”, quando a força do olhar do indivíduo, independente de sua vontade, é capaz de atingir uma pessoa provocando-lhe algum mal, aqui acentua-se a presença de uma força mágica cuja existência é anterior à vontade e cuja força a ultrapassa. É dessa força que estamos tratando.
Em uma outra situação ocorrida em outra festa de Reinado, de outra irmandade, uma das integrantes do grupo sentiu-se mal de repente durante as festividades. O capitão da guarda, investigando as possíveis causas (causas mágicas) da enfermidade descobriu que tinha sido a mesma garota a responsável pela preparação do andor de São Benedito. Questionando-a sobre a forma como ela havia preparado o referido andor, descobriu que ninguém a havia orientado sobre a forma “correta” de fazê-lo, que incluía certas orações e operações específicas. Não tendo ela seguido os preceitos, e não se protegendo adequadamente, fôra vitima de uma contra-magia. Com esse caso quero ressaltar que, pré-existindo essa força, que todos conhecem, mas não sabem de onde provém, o grupo adquiriu certos conhecimentos capazes de lidar com ela. Para cada situação específica, existem práticas mágicas específicas (que envolvem gestos, orações, utilização de objetos específicos etc.) que buscam controlar, manipular ou, de alguma forma, anular essa energia em movimento. Assim como destacou Malinowiski em Argonautas do Pacífico Ocidental, ao analisar o processo de feitura das canoas trobiandesas, esses conhecimentos estão ligados à tradição e por isso requerem a transmissão hereditária.
“As forças que mantêm os nativos no seu padrão tradicional de comportamento são, em primeiro lugar, a inércia social específica que caracteriza toda sociedade humana e constitui a base de todas as tendências conservadoras e, em segundo lugar, a crença inabalável de que, se os padrões impostos pela tradição não forem observados, as conseqüências serão funestas” (Malinowiski, 1978: 94).
Como mencionado, esse universo de segredo, que no congado recebe o nome de fundamentado, é transmitido dos mais velhos para os mais novos, sendo uma das formas pelas quais conseguem lidar com esses elementos sobre-naturais.
Tentei apontar, que para os membros do Reinado, sua tradição não se desvencilha do universo sagrado, por ser sagrada por excelência. O sagrado sendo uma dimensão anterior e posterior a eles, que os ultrapassa; a magia, força independente com a qual só conseguem lidar graças aos conhecimentos tradicionais, aos fundamentos, que receberam dos antepassados e que passam de geração em geração, recriando, reinventado a tradição. Como nos revela Manoel: repetir, repetir até ficar diferente. Desta forma seu pensamento é espelho deste universo, sendo, o que chamei de pensamento mágico, o idioma pelo qual apreendem não só sua tradição, mas todo o universo ao seu redor.Por isso os membros do Reinado não temem seu fim. O Reinado de Maria é eterno, pois eterna é a virgem, e eterna é a força que emanam dessa manifestação!
“É a fé e o amor. E é uma raiz africana que não acaba nunca. Ela acaba aqui, brota ali. Nossa Senhora do Rosário é poderosa e não vai deixar acabar nunca, nunca, nunca. (...) E assim vai, até eu chegar no meu destino”.
(Fala do Capitão Hélio, da Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário Vila São Jorge, do bairro Nova Granada, no documentário Salve Maria).
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A Irmandade do Jatobá está localizada na região de mesmo nome, limítrofe ao município de Ibirité, a poucos metros do trevo da cidade. Hoje faz parte do bairro Itaipu, pertencente ao município de Belo Horizonte. Em um passado remoto, como se verá adiante, as duas Irmandades integravam uma mesma festa.
Utilizo o termo reinado em contraposição ao termo congado por ser este último um termo historicamente utilizado para designar diferentes manifestações, que guardam grandes especificidades: guardas de Congo, de Moçambique, ternos de Marujos, Vilões, Catopés, Reinados etc. É importante destacar que em muitas “irmandades” seus membros criticam o emprego da nomenclatura congado como sendo uma categoria imposta pelos de fora, principalmente os estudiosos – folcloristas. Neste caso denominam a manifestação na qual estão inseridos como reinado – “Reinado de Nossa Sra. do Rosário”. No entanto, o termo congado é bastante difundido entre os membros dessa manifestação sendo utilizado, inclusive, pelos membros da Irmandade de Ibirité.
Em quimbundo “undamba berê, berê, dione de calunga uiá”. Capitão João Lopes (Congado do Jatobá/BH) apud. Martins, 1997: 44.
Conteúdo em parênteses acrescentado por mim.
Irmandades são as "comunidades" que congregam os membros do congado constituindo um grupo particular. Na maioria das vezes são reconhecidas oficialmente enquanto associações civis e possuem, além de uma hierarquia institucional com presidente, secretário, tesoureiro etc., uma hierarquia religiosa que coincide com a hierarquia do rito com reis e rainhas, capitães regentes e capitães mor, 1º e 2º capitães, dançantes etc. Na maioria das vezes as Irmandades levam o nome da localidade de origem e do santo ou santa padroeiro da comunidade aparecendo, também, com um pouco menos de freqüência, com o nome do patriarca ou matriarca do grupo. Como exemplos: Irmandade Nossa Sra. do Rosário de Ibirité, Irmandade Nossa Sra. do Rosário do Jatobá, Irmandade Nossa Sra. do Rosário Os Ciriaco's, Comunidade dos Arturos de Contagem, Irmandade Nossa Sra. do Rosário do Justinópolis.
Candombe designa tanto os três tambores que retiraram a imagem das águas, como a guarda que conduz estes tambores, estas mais raras (segundo a tradição seria essa a primeira guarda de congado), como também os rituais sagrados e festivos realizados com os três tambores.
Gungas são pequenas latinhas e/ou cabaças, ou também um conjunto de pequenos guizos, com sementes, chumbos ou pedrinhas em seu interior que amarradas aos tornozelos dos moçambiqueiros emitem um som e um ritmo bem característicos. Patangomes são instrumentos manuais, arredondados e achatados, confeccionados com metal e contendo em seu interior sementes, chumbo e/ou pedrinhas.
Farda é o nome dado às vestimentas dos congadeiros. Cada guarda possui sua farda característica, com os seus significados característicos. Isto faz com que possamos reconhecer, na maioria das vezes, sem conhecer previamente a guarda, se ela é de Congo, ou de Moçambique, ou de Caboclo, assim por diante. Bem como, reconhecer as irmandades pelas suas fardas como é o caso da Irmandade Treze de Maio, do Bairro Concórdia de Belo Horizonte, que traja sua indumentária de cor roxa e é conhecida como os roxinhos do Concórdia ou os roxinhos de Dona Izabel. Segundo Sr. Antônio, Capitão de Moçambique Dos Ciriaco’s, em conversa comigo, a tradição manda que toda farda seja firmada sobre um propósito. Suas cores devem ter um significado ritual específico, bem como seus emblemas. No entanto, hoje é bastante comum que as fardas se modifiquem a cada ano acentuando a “luxuosidade” e a beleza da guarda, como também, aguçando possíveis disputas.
As cores azul, branca e rosa representam Nossa Senhora do Rosário, por isso é mais recorrente a presença dessas cores. Mas há muitos grupos de Moçambique que portam fardas de outras cores e sua escolha pode se dar por simples gosto e apreciação da cor.
“Quando Dona Maria se refere a ‘guarda de só gente preta’, esta imagem não evoca apenas, por assim dizer, o ‘tom da pele’ dos dançantes, mas uma maneira particular de se vestir, tocar e dançar. Nesse sentido, para ser um moçambiqueiro é preciso trajar saiote, ter chocalhos amarrados à canela e dançar batendo os pés, ao som de um ‘ritmo quente’, produzido por variados instrumentos de percussão. O conjunto dessas características é que fazem dos moçambiqueiros, a ‘ala mais africana do congado’”(Garone, 2004: 59). Para além dos traços aqui apontados, acredito que essa “africanidade” é atribuída ao Moçambique por seus poderes mágicos, já mencionados, que, em contraposição à simbologia católica muito presente na manifestação, remete às práticas mágicas africanas, aos ritos africanos dos ancestrais.
Dentro do grande panteão de santos da igreja católica e em meio a tantas denominações de Nossa Senhora, estes nomes não aparecem gratuitamente. Estes santos estão intimamente relacionados à devoção negra. São Benedito e Santa Efigênia são santos de cor preta e, por conseguinte, protetores dos negros.
Ver, entre outros, Vander Poel, Câmara Cascudo e Mário de Andrade.
Assim Frazer conceitua a magia simpática: “Se analisarmos os princípios lógicos nos quais se baseia a magia, provavelmente concluiremos que eles se resumem em dois: primeiro, que o semelhante produz o semelhante, ou que um efeito se assemelha à sua causa; e, segundo, que as coisas que estiveram em contato continuam a agir uma sobre as outras, mesmo à distância, depois de cortado o contato físico. Ao primeiro princípio podemos chamar de lei da similaridade, ao segundo, lei do contato ou contágio. Do primeiro desses princípios, a lei da similaridade, o mago deduz a possibilidade de produzir qualquer efeito desejado simplesmente imitando-o; do segundo, que todos os atos praticados sobre um objeto material afetarão igualmente a pessoa com a qual o objeto estava em contato, quer ele constitua parte de seu corpo ou não. Os sortilégios baseados na lei da similaridade podem ser chamados de magia homeopática ou imitativa; os que tem fundamento na lei do contato ou contágio podem ser chamados de magia por contágio” (1982: 34).
Daqui em diante, devemos ter sempre em mente a contribuição do pensamento frazeriano, que liga as figuras reais e suas insígnias a aspectos divinos e mágicos.
Mais adiante tratarei da figura central dos rituais do Reinado: Nossa Senhora do Rosário. Por enquanto, é importante guardar a imagem dessa nominação mariana por ser ela elemento estruturante do mito e da performance ritual do congado e, ao mesmo tempo, a imagem de uma rainha.
O povo do Reino do Congo (Kongo) é chamado Congolês ou conguês. O termo bakongo é usado para descrever os povos que falam kikongo e que habitam região bem maior que o Congo, sendo que, os habitantes do reino chamavam-se a si próprios de muisikongo ou “‘cidadão do reino do Congo’”, termo que não se aplicava a nenhum outro povo, mesmo que falassem a mesma língua. BaCongo são os grupos habitantes do antigo reino do Congo e adjacências. Banto é o nome dado ao macro-grupo cultural habitante de vastas regiões da África Centro-Oriental. (ver Mello e Souza, 2006)
Marina de Mello e Souza explica a utilização dos termos rei, nobreza, corte e outros afins para identificar os cargos no reino do Congo. Segundo a autora, o faz da mesma forma que outros estudiosos o fizeram seguindo a terminologia utilizada pelos missionários, comerciantes, administradores e viajantes que observaram esta sociedade na época descrita e leram-na com os olhos e conceitos europeus. “Na linguagem corrente da época, o chefe era o mwene, sendo o rei o mwene Kongo, segundo a grafia atualmente usada para escrever o kikongo. Os observadores portugueses observaram o rei como mani Congo e os chefes locais como mani, seguido do nome da localidade que governavam, mani Soyo, por exemplo. Com a conversão do rei do Congo ao cristianismo, a decretação deste como religião oficial do reino, e a europeização dos hábitos da corte, os títulos europeus passaram a vigorar também entre os congoleses convertidos” (2006: 335).
“‘ Uma cadeia de eventos que não mais poderia ser prevista nem mesmo impedida’” ( William Ellis, segundo imediato de médico, HMS Discovery. Apud Sahlins, 2003: 140).
“Festas religiosas são as atividades urbanas mais antigas do Brasil. Até o século XIX foram os acontecimentos culminantes da vida social de nossas cidades. Sua importância decresce a partir dos anos 1920-30, reganhando força e vitalidade atualmente, embora com outras formas de expressão, menos institucionalizadas. Mesmo que muitos decretem a morte da festa (leia-se da tradição), ou pelo menos sua domesticação com a crescente urbanização do Brasil, a festa, subversiva que é, teima em manter-se viva, exuberante, em constante processo de metamorfose, tal como Dionísio e suas epifanias. Como refere Sanchis, ‘por uma que desaparece, reforçam-se dez, quantas novas festas surgem um pouco por toda parte! As mesmas? Ou semelhantes? Não completamente. E, se desaparecem algumas particularidades, criam-se outras e estabelece-se nova diversificação’ (1983: 16). Vale dizer que como fenômeno vindo do fundo da tradição e que, em relação à contemporaneidade mais imediata, possa parecer alguma forma de arcaísmo, de sobrevivência, de nostalgia, ou até mesmo de atraso, é, no entanto, vivida, por aqueles que dela participam, como explosão de vida, como revigoramento e, portanto, como uma espécie de renascimento, pleno de atualidade, de inovação, de ruptura. Festa é a presentificação da tradição enquanto experiência que dá sentido à existência”(Perez, 2007: 10).
Parte considerável deste item foi copilado do texto “Notas e observações sobre o projeto de pesquisa Cartografia das festas em Minas Gerais: por seus viajantes e cronistas” escrito e apresentado por Léa Freitas Pérez, minha orientadora, e por mim no 1º Simpósio de Festas e Sociabilidades realizado em Sergipe em dezembro de 2006. O texto se refere ao projeto de pesquisa Cartografia das festas em Minas Gerais: por seus viajantes e cronistas desenvolvido desde 2004 no CER – Centro de Estudos da Religião Pierre Sanchis - com financiamento da FAPEMIG e do CNPq e que contou com a colaboração dos colegas André Tavares, Diogo Almeida, Leila Schoenen e Marcos da Costa Martins.
Relativamente ao Brasil, a literatura de viagem tem sido fartamente usada por nossos mais importantes intelectuais: desde Nina Rodrigues, passando por Gilberto Freyre, Octávio Ianni, entre outros.
É preciso uma pesquisa de maior profundidade, tanto em documentos históricos, quanto através de entrevistas com antigos membros do Reinado e antigos moradores do município de Ibirité, para uma contextualização histórica mais rica e precisa da manifestação na cidade. A versão aqui apresentada é fruto da compilação de informações contidas no livro Afrografias da Memória, de Leda Martins e de fragmentos de memória recolhidos em depoimentos soltos de membros do congado e moradores do município.
Não foi possível confirmar essa informação através de documentos, apenas por relatos orais.
Sabe-se, também, através de fontes orais que a capela, hoje demolida, teria sido erguida pela própria Dona Pulquéria, o que nos leva a pensar que poderia ela ter estreita relação com os festejos do Reinado, já que também sabemos que era descendente de negros. A rua aberta onde se localizava a antiga capela possui, hoje, o nome de Rua do Rosário, e uma outra capela, construída em homenagem e Nossa Senhora do Rosário e São Vicente de Paula, encontra-se nela erguida, onde são realizadas, todos os anos, as festividades do Reinado.
Foi nas festividades deste ano que ofereci o almoço no domingo da entrega das coroas. O almoço foi oferecido na casa da Tuca, a rainha conga, e no mesmo final de semana em que ocorreu o caso em questão.
Manoel de Barros, o poeta.
Essas idéias são ainda inacabadas, constituindo um trabalho embrionário. Espero amadurecê-las e aprofundá-las em trabalhos posteriores. Que minhas notas finais não sejam tomadas enquanto uma conclusão, mas como considerações abertas a outras reflexões.