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sábado, 7 de fevereiro de 2009


“companheiros de palma nós vamos brincar/ a senhora do rosário mandou me chamá/ licença Senhor Rei, Senhora Rainha licença, licença capitão, licença tamborzeiros, licença o povo todo/ chorou, chorou,chorou, êêê...” (tambozeiros de Araçuaí)



Os festejos do Reinado apresentam uma estrutura organizacional complexa, disseminada em uma tessitura ritual que desafia e ilude qualquer interpretação apressada de toda a sua simbologia e significância. Levantação de mastros, novenas, cortejos solenes, coroação de reis e de rainhas, cumprimento de promessas, folguedos, leilões, cantos, danças, banquetes coletivos (rezas e benzeções, embaixadas, pontos, simpatias) são alguns dos muitos elementos que compõem as celebrações dramatizadas em toda Minas Gerais” (Leda Martins, 1997:44).



Durante as festividades do Rosário, o mito de “origem” do Reinado é rememorado e recriado pela "performance ritual" através de gestos, cantos, falas, danças e disposições hierárquicas que, hibridizados por outros elementos sagrados, bem como a elementos sociais e políticos que aludem à diáspora africana, à escravidão colonial e ao preconceito cultural presente após a abolição, fundam novas narrativas. Durantes os rituais, os reis e rainhas Congos são os líderes cerimoniais, núcleo de uma estrutura hierárquica rígida. Representam tanto a virgem coroada, como as nações africanas do passado e seus ancestrais. Os capitães comandam suas guardas. Além dos reis e rainhas Congos, aparecem também os reis festeiros ou reis de ano, reis de São Benedito e rainhas de Santa Efigênia, da Cruz, de Nossa Senhora das Mercês entre outros. Enquanto estes últimos reis têm suas funções garantidas pela justeza de sua conduta e pela vontade do grupo, o rei Congo e a rainha Gonga possuem cargo vitalício e hereditário, na maioria das vezes. Sua importância exige, diferente dos demais reis, que sejam negros.

A coroação de reis e rainhas já era comum em todo o Brasil, desde o início do século XVIII. Encontram-se em Minas registros de Irmandades (comunidades que congregam os membros do congado ou terno constituindo um grupo particular) de Nossa Senhora do Rosário datados em 1704 e 1715 nas cidades de Serro e de Ouro Preto. Por aqui se multiplicaram as Guardas de Congo, Gongo de viola, Moçambique, Catopé, Vilões, Marujos e Caboclos, cada qual com elementos e performaces específicos.

A tradição do congado ou reinado está intimamente ligada a história de nossa população negra, sempre negligenciada como sujeito histórico. Estes festejos sempre foram tratados com um olhar muitas vezes folclorizante, concebidos enquanto divertimento, distração, devoção popular ou, quando mais longe, como forma bem sucedida de organização sócio-politica. Teses, interessadas em destacar a força e resistência dos negros, frente ao poderio e opressão do senhorio branco, remetem sempre ao rico universo cultural negro, à sua capacidade de persistir à cultura hegemônica, apropriando-se dela, e de sua eficiente organização política, capaz de subverter uma situação de total opressão.

O congado, entretanto, vai além da identificação com o reino do Congo e a influência católica. Assim, o cotidiano destes praticantes está intimamente ligado a uma lógica própria de viver, pensar e vestir, sobretudo a um pensamento mágico. Não é fácil para um leigo entender a espiritualidade vivida pelos congadeiros e perceber como o rosário de Maria os sustenta nas dificuldades da vida. São os mistérios de uma prática imensamente fiel aos antepassados, à ancestralidade.

Ser um congadeiro exige uma qualificação cultural, cuja a base é o envolvimento com a memória dos ancestrais do terno ou guarda (grupo de congada) que participa. As histórias de vida e sagas familiares são assim repassadas de pais para filhos. Estamos envoltos em um universo plenamente mágico, onde todas as observações encontram-se subordinadas às crenças e/ou à fé que os membros do reinado compartilham, servindo elas para explicar e justificar acontecimentos.

Dentro destas comunidades são os mais velhos quem detém a autoridade, sobretudo sobre universo do sagrado, que jamais se desvencilha desta tradição. São os chamados fundamentos, sendo este uma das formas pelas quais consegue lidar com os elementos sobrenaturais, com o sagrado. “Seu pensamento é espelho do universo, pensamento mágico, idioma pelo qual apreendem não só sua tradição, mas todo o universo em seu redor” nos diz o antropólogo Rafael Barros Gomes. A tradição e respeito aos bens culturais e à ancestralidade são fundamentais para grupo. Eles vêm sendo transmitidos de geração em geração, recriando e reiventando a tradição. Aqui está a importância dos mais velhos juntamente com a força dos mais novos. Uma criança de dois anos já participa ativamente da festa. Ela possui seus instrumentos e tem a missão da continuidade. Os jovens, com sua alegria contagiante, dão um toque de frescor à festa, seja no ritmo pulsante, no canto ou na dança saltitante com suas gungas sonoras, tendo eles o compromisso com seus pais de guardar e dar continuidade ao reinado.

O Mito



Nossa Senhora do Rosário: A Lenda
Frente ao estandarte segurado pelo alferes, a rainha pedia licença ao capitão e entrava no comando da guarda. De lá prá cá, de cá prá lá. Domi, na praia, estava olhando pro mar. Sua imaginação viajava nas ondas pro outro lado das águas. Quem sabe não podia abraçar seus irmãos africanos, separados desde a vinda para a América. Sentou-se na areia e pos-se a matutar. Sentindo as frescas espumas borbulharem nos pés. Lavando com o sal a dor e a saudade no peito: __Se esta água banhasse as costas d'África, mandaria um recado: oi, gente, estou da banda de cá.A alegria fazia-se presente ao recordar o passado. Naquele dia, embarcou seu pensamento em busca de suas juras sagradas do tempo de criança. Aportou seu pensar no litoral africano, onde seu amigo Minguinho viu a mãe de Deus. Lembrando: Era sete de outubro, Minguinho foi à praia com as mãos cheias de pedrinhas agradecer a Nossa Senhora pela pesca do dia; a cada agradecimento lançava uma pedrinha no mar, dizendo:" __Senhora! o jacá trouxe pouco peixe. Mas é o bastante pra nos abastar. Bendito é este alimento, senhora!!!"Era sua forma de rezar, pois desconhecia o uso do terço. Ao jogar a última pedrinha, sentiu as ondas se enfurecerem, a luz do sol apagou-se, as borbulhas rolavam na areia, deixando pegadas na praia com os caranguejos. Num relâmpago o vento trouxe o trovão, acalmando a atmosfera, enquanto as águas davam à luz um clarão de cor azul do céu."__Hôoo!!! exclamou Minguinho - será Nossa Senhora?" "Vestida de branco ela apareceu trazendo na cinta as cores do céu". Nos braços portava uma criancinha, na mão, o rosário. Sua capa verde-mar flutuava no ar, provocando ciúmes nas águas do oceano."__A bênção minha rainha - pediu ele. __Eu vôs abençôo com o rosário de Maria - respondeu ela.__Ah! então é Nossa Senhora do Rosário?"__Sim, eu vim para lhes ensinar a rezar o terço".Aproximando-se deu-lhe um rosário dizendo:" __O rosário será a misericórdia do homem".Ele recebeu com alegria e acrescentou:" __A oração pode ser o adoçante no nosso momento de amargura".Minguinho saiu para anunciar a aparição da Santa. Formaram-se grupos para visitá-la. Primeiro vieram os caboclos, representando os índios, dançando e cantando: "Minha Virgem do Rosário / hoje é Vosso dia. / Nós viemos festejar..."A esperança de tê-la entre eles foi levada pelas ondas. Restava apenas ir embora, saudando-a: "Adeus, minha Virgem Santa / esposa do São José. / Até pro ano / se Deus nosso sinhô quiser..."Chegou a Marujada, representando os marinheiros, fazendo as mesmas evoluções:"Oh, minha Virgem do Rosário / nós viemos festejá. / A Virgem Santa Maria..."Da mesma forma ela ficou. Estática em alto mar. Só o vento se fazia mensageiro, levando as ressonâncias dos cantantes:"O rei mandou lhe chamar / se chama eu vou / No Palácio da rainha / nunca vi tanta fulô..."Acreditando um dia poder voltar, os marujos foram-se cantarolando:"Zum... zum... zum... lá no meio do mar / É o vento que nos atrai, / é o mar que nos atrapalha / prá no porto chegar, / zum... zum... zum..."O terceiro grupo a visitá-la foi os Catopês. Pessoas simples de cor negra. Minguinho entre eles cantava:"Viva a rainha do céu, / viva o rei, viva a rainha / Donde vai parar do rosário / Donde vai morar, ora lá..."Flutuando e caminhando de mansinho, ela se pôs à beira mar, louvando os dançantes com suas palavras:"__A simplicidade e a humildade são essenciais para o crescer espiritual de cada um". Colocando-se entre eles, dirigiu-os à capela, enquanto cantavam: "Ave Maria, canta lá do céu. / Sua casa cheia de fulô de laranjeira / vamo embora, semeando flores, / por este caminho a fora..."Na porta da capela, movidos pela fé, aclamaram-na protetora dos negros: "Entremos nesta casa com prazer e alegria, pois dentro dela mora, o filho da Virgem Maria..."Convidada a subir ao altar, ela ouviu: "Deus salve a casa santa / onde fez a morada / onde mora o cálix bento / e a hóstia consagrada".Miguinho, representando seus companheiros, exclamou:"__Senhora! com o rosário vamos ficar mais próximos da perfeição".Respondeu a Santa:"__Vocês hão de encontrar, nas contas do rosário, forças para enfraquecerem as barreiras atiradas em seu caminhos".
Desde então o rosário de Maria foi proclamado nos lares de quem queria.Domi, um africano que deixou de governar em terra natal, para reinar como escravo nas minas de ouro do Brasil, voltou à realidade com um desejo:"__Vou debulhar as contar do rosário, igualmente o lavrador debulha uma graúda espiga de milho: com amor e esperança de novas boas safras".
*Numa só lenda aparecem variantes de região para região. A lenda de Nossa Senhora do Rosário é um exemplo. A estória acima foi pesquisada na Festa do Rosário, na cidade do Serro, Minas Gerais. Foi acrescida de interpretações do autor. As personagens Domi e Minguinho foram inspiradas no nome de São Domingos. Segundo a Igreja Católica, foi ele quem recebeu o rosário das mãos de Nossa Senhora do Rosário. O autor datou o fato como ocorrido em sete de outubro, porque nesse dia comemora-se o dia da Santa do Rosário. E outubro é o mês do rosáriofonte: http:// www.pousadadascores.com.br/leitura_virtual/cultura_brasileira/negro.htm
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Nos conta uma das tantas variantes do mito, que durante o período da escravidão, surgiu no mar a imagem da Senhora do Rosário, uma das personificações de Maria, também chamada de Rainha, Mãe de Jesus. Depois da tentativa, sem sucesso, do resgate da imagem pelos homens brancos, receberam os negros a permissão de também se empenharem no recolhimento da imagem. Um primeiro grupo, com instrumentos, gestos e cânticos específicos, também não obteve êxito. Esse primeiro grupo é associado às guardas de Congo. Um segundo grupo, então, identificado como Candombe, e hoje associado às guardas de Moçambique, trazendo consigo outros instrumentos musicais (gungas e patangomes), os tambores sagrados, indumentária característica (mais simples e rústica) e recorrendo a gestos, danças e cânticos diferenciados, conseguiram a façanha e seduziram a Santa que se colocou sobre um dos tambores, o santana, e devagar, bem devagar, acompanhou aqueles homens. Neste instante, a imagem chorou e de suas lágrimas caídas no chão surgiu o arbusto de nome lágrimas de Nossa Senhora, com cujas sementes se faz o rosário em sua devoção. A imagem, então, foi colocada em uma simples choupana, onde permaneceu e passou a ser cultuada como protetora dos negros. Por essa força é dado aos Moçambiques o dever de conduzir os reis e rainhas durante os festejos do Reinado.


Glossário do Reizado


Congos



Os Congos apresentam-se, na estrutura ritual, à frente do cortejo abrindo os caminhos. Eles lutam, limpam o percurso, enfrentam os males e anunciam, com suas alegorias, os que se seguem a ele. Na sua grande maioria apresentam adereços coloridos e brilhantes, capacetes com fitas, quepes, saiotes coloridos, bastões, com os quais fazem coreografias etc. As cores e adereços que compõem as fardas modificam-se de guarda para guarda, de região para região. Posicionam-se em duas fileiras encabeçadas por aqueles que portam as caixas. Os dançantes pulam e dançam fazendo as mais frenéticas coreografias. Seus movimentos são rápidos e suas caixas tocam dois ritmos diferentes: o grave e o dobrado. As espadas e o pequeno tamborim são os símbolos hierárquicos conduzidos pelos capitães da guarda. Na leitura mítica, como pode ser percebido, o Congo representa o primeiro grupo a tentar resgatar a imagem do mar sem obter sucesso.

Moçambique



É o senhor das coroas, é dada a ele a função de conduzir reis e rainhas. Por isto, é sempre o último grupo do cortejo, e é também por isso que sempre movimenta-se mais lentamente. Seus membros possuem fardas sem muitos coloridos e penduricalhos, mas rica em outros adereços. Só os moçambiqueiros usam lenços amarrados na cabeça, gungas e patangomes e tambores de sons mais surdos e graves. Vestem saiotes brancos, ou azuis, ou rosa, variando de guarda para guarda, sobre a farda toda branca. Apesar de mais recorrentes, essas cores nem sempre aparecem no moçambiques. Dançam com os pés próximos do chão, com pisadas fortes, ombros encurvados, lembrando os pretos velhos. Nos momentos específicos, sempre dançam, cantam e caminham sem dar as costas para os reis e rainhas. São tidos como a guarda mais “preta” do congado, fazendo alusão ao mito e ao fato de ser atribuído aos moçambiqueiros o poder de fazer e desfazer magias. Seus capitães carregam, como símbolo de poder, bastões de madeira que possuem poderes mágicos e passam por específicos rituais de consagração. Na releitura mítica, representam o grupo que conseguiu tirar a imagem do mar, conduzindo-a até a cabana para ela preparada.

O rosário


Símbolo máximo da devoção de Nossa Senhora, contém quinze mistérios (cada um dos terços possui cinco mistérios, os gozosos, os dolorosos e os gloriosos), e é comumente usado em torno do corpo, como proteção. Serve também para indicar os fiéis devotos, representando uma identidade grupal dos congadeiros.

Os tambores


São considerados instrumentos sagrados por se constituírem como forças da natureza. Por isto são chamados de Treme Treme, Cachoeira e Mata Virgem.

Bastões e espadas


São instrumentos de força do capitão, que através deles protege seu povo, afastando as energias negativas.

As bandeiras



São de duas naturezas :
As da guia são as que abrem os caminhos para as guardas, tendo estampadas as imagens dos santos de devoção de cada grupo.
As levantadas simbolizam o começo das atividades festivas em uma determinada casa. Representam a ligação entre o divino/céu e o fundamento/terra, lugar sagrado que caracteriza o centro energético da celebração.

Reinado



Designa de forma abrangente, irmandades, guardas, bandas ou ternos e congados, pois todos estes grupos se organizam a partir da devoção a Nossa Senhora do Rosário. O Reinado se estrutura e organiza por meio de três formas hierárquicas: vassalos, capitania e corte.


Os Vassalos



Os vassalos é todo o corpo de tocadores, dançantes ou brincantes comandados por um capitão. Invocam, com fé, os poderes do Divino Espírito Santo. Não tendo autoridade dentro do grupo, seguem as determinações da Capitania e do trono coroado.

A capitania


Tem como principal função proteger o seu trono coroado, bem como manter a ordem e a disciplina interior de cada guarda.
O principal personagem é o Capitão-Mor, também denominado coordenador ou general. Junto ao Rei de Congo representam as principais autoridades dentro de um reinado.



A Corte



Tendo o rei e a rainha Congos seus membros principais, a corte representa o Reino de Nossa Senhora do Rosário na Terra e é composto também pelos rei e rainha Perpétuos, rei de São Benedito e rainha de Santa Efigênia, além dos reis brancos ou festeiros, que são os patrocinadores da festa, e os príncipes e as princesas, autoridades a quem as guardas devem prestar homenagens e reverenciar com cortejos, danças, cânticos e toque de tambores.

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